Os Contadores de Verdades
Na ficção inglesa há muitos escritores que agradam nosso desejo de acreditar:
Defoe, Swift, Trollope, Borrow, W.E. Norris, por exemplo. Entre os franceses,
lembramos instantaneamente de Maupassant. Eles nos asseguram que tudo é como nos
dizem que é e o que descrevem de fato acontece diante de nossos olhos. Seus romances
nos oferecem o mesmo tipo de revigoramento e prazer que temos ao assistir a algo
acontecendo na rua lá embaixo. Um coletor de lixo derruba com um movimento
desajeitado do braço uma garrafa que parece conter Condy. Ela quebra no asfalto. O
coletor se abaixa, cata os cacos e se volta para um homem que está passando. Não
conseguimos tirar os olhos dele até que tenhamos saciado nosso desejo de acreditar por
completo. É como se um canal fosse cortado, no qual de repente e com grande alívio,
uma emoção até agora reprimida extravasasse. Esquecemos seja lá o que for que
estávamos fazendo. Essa experiência positiva sobrepuja todos os sentimentos confusos e
ambíguos de que estamos imbuídos naquele momento. O coletor derrubou a garrafa, a
mancha vermelha se espalha no asfalto. Acontece precisamente assim.
Os romances dos grandes contadores de verdades, dos quais Defoe é, de longe, o
líder inglês, nos proporcionam esse tipo de revigoramento. Defoe nos conta a história de
Moll Flanders, de Robinson Crusoe, de Roxana e sentimos nosso poder de crença
precipitar-se, moldado instantaneamente, fertilizando e revigorando todo nosso ser.
Acreditar parece o maior de todos os prazeres. É impossível saciar nossa avidez pela
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verdade de tão voraz que é. Não há uma só palavra vaga ou inconsistente no livro que
surpreenda nosso inquieto senso de segurança. Três ou quatro ataques diretos da pena
esculpem o caráter de Roxana. Seu jantar é servido com regularidade. Há vitela e nabos.
O dia está bom ou nublado, o mês é setembro ou abril. Com persistência e naturalidade
e uma curiosa reiteração quase inconsciente, os fatos que mais fortalecem nossa
confiança na estabilidade da vida real – dinheiro, mobília, comida – são reiterados, até
que parecemos aprisionados entre objetos sólidos em seu universo sólido.
Um dos elementos de nosso deleite vem do fato de esse mundo, com todos os
seus pormenores, ser brilhante, tridimensional, difícil e, ainda assim, ser completo, a
fim de que sejamos tranqüilizados seja qual for a direção que tomemos. Se
pressionarmos além do confinamento de cada página, como fazemos instintivamente,
complementando o que o autor deixou por dizer, percebemos que traçamos nosso
caminho, há indicações que se deixam perceber. Há um submundo, um lado obscuro
desse mundo. Defoe presidia seu universo com a onipotência de um Deus a fim de que
ficasse equilibrado com perfeição. Nada é tão grande que ostracize outro elemento e
nada é tão pequeno que agigante outro fato.
O nome de Deus é com freqüência proferido pelas pessoas, que invocam uma
divindade pouca coisa menos substancial que elas mesmas, um ser bem acomodado no
topo das árvores, não muito distante das pessoas. Uma divindade mais mística, se Defoe
nos fizesse acreditar nela, teria desacreditado o cenário e lançado dúvidas sobre a
essência de homens e mulheres, além de feito sucumbir nossa crença neles. Suponha
que ele mesmo lidasse com as sombras esverdeadas das profundezas da floresta ou com
a fluidez do verão. Outra vez, não importa qual fosse nosso deleite na descrição,
deveríamos sentir constrangimento porque essa outra realidade prejudicaria a realidade
sólida e monumental de Crusoe e de Moll Flanders. Assim como é, saturada com a
verdade do próprio universo de Defoe, tal discrepância não teria permissão para se
impor. Deus, homem e natureza são todos reais, do mesmo tipo de realidade: uma
proeza estonteante, pois implica submissão completa e perpétua do autor a sua
convicção, uma surdez obstinada a todas as vozes que o seduzem e tentam encantá-lo
com outras suscetibilidades. Devemos só refletir como é raro um livro ser desenvolvido
com o mesmo impulso de crença a fim de que sua perspectiva seja harmoniosa por
inteiro para percebermos que escritor grandioso foi Defoe. Podemos contar nos dedos os
romances produzidos para serem obras-primas que falharam porque defendiam
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bandeiras: as realidades se misturam, o ponto de vista muda e, em vez de clareza,
conseguimos uma confusão atordoante que nem sempre é só momentânea.
Tendo saciado nosso desejo de crença e aproveitado o alívio e o sossego desse
mundo existente, exterior e positivo, tão palpável e concreto, aquela falta de atenção
pela inatividade começa a nos assolar, o que significa que a resistência em uso está
saturada. Absorvemos tanto dessa verdade literal quanto pudemos e começamos a
desejar alguma coisa alternativa, porém harmoniosa. Não queremos, exceto em um
lampejo ou insinuação, uma verdade como a oferecida a Roxana quando ela nos conta
como seu senhor, o Príncipe, sentava ao pé de seu filho e adorava olhar para ele
enquanto dormia. Tal verdade é escondida, nos faz mergulhar e percebê-la e, sendo
assim, paralisa a ação. É ação que queremos. Um desejo seguiu seu curso, um outro
salta à frente para assumir a carga e nem mesmo formulamos nosso desejo, Defoe já o
concedeu. Adiante com a história é o grito constante em seus lábios. O fardo é liberado
tão logo reúna os fatos. O tempo todo, brotando com frescor e sem esforço, ação e
evento se sucedem com rapidez colocando em movimento essa densa acumulação de
fatos e mantendo uma brisa soprando em nossos rostos. Torna-se óbvio que, se as
pessoas de Defoe são generosamente equipadas ou despojadas de certas afeições como o
amor de marido e filhos, o que esperamos delas é serenidade calma para se
movimentarem mais rapidamente. Devem viajar com leveza, pois foi pela aventura que
foram criadas. Precisarão mais de sagacidade, músculos e senso comum na estrada
pedregosa que devem trilhar do que de sentimento, reflexão e poder de auto-análise.
A crença é agraciada por Defoe por completo. Seu leitor pode ficar descansado
pois compartilha de grande parte do domínio do autor. Testa, experimenta, sente que
nada o frustra ou se esvai diante dos olhos. Ainda assim a crença busca sustentação
renovada como quem dorme procura a outra face do travesseiro. Volta-se,
provavelmente, para alguém mais próximo do que Defoe para satisfazer seu desejo de
verdades, pois o distanciamento de um romance no tempo estabelece graciosidade
imaginativa, em conseqüência, estranheza. Se o leitor tivesse acesso, por exemplo, a
algum livro de um autor prolífico e outrora estimado como W.E. Norris descobriria que
a justaposição de dois livros apresentaria cada um deles com mais clareza.
W.E. Norris foi um autor diligente, excelente para isolarmos em estudo, pelo
menos porque representa aquele vasto grupo de romancistas cujo trabalho mantém a
ficção viva na falta de grandes mestres. A princípio, parecemos receber tudo o que
precisamos: meninas e meninos, críquete, tiro, dança, embarcações, amor, casamento;
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um parque aqui, uma sala de estar londrina ali; um senhor inglês aqui, um cafajeste ali;
jantares, chás, galopes no Row e, por trás de tudo isso, os verdes e cinzentos campos
domésticos e veneráveis e casas nobres da Inglaterra. Conforme uma cena sucede a
outra, lá pela metade do livro, parecemos ter muito mais em que acreditar do que
podemos suportar. Exaurimos o vigor da gíria, da modernidade, da hábil mudança de
humor. Matamos o tempo no limiar das cenas, pedindo permissão para pressionar um
pouco mais. Capturamos uma frase e a observamos como se pudesse produzir mais. Na
seqüência, desviamos os olhos das figuras principais e tentamos delinear alguma coisa
no pano de fundo, perseguimos esses sentimentos e relações do momento presente sem,
desnecessário dizer, o objetivo de descobrir alguma concepção arguta, algo que
possamos chamar de uma leitura de vida. Não, nosso desejo é outro: alguma sombra de
profundidade apropriada à grandeza das figuras, alguma Providência como a fornecida
por Defoe ou a moralidade que ele sugere a fim de que possamos ir além desse tempo
sem cair na falta de sentido.
Descobrimos que essa é a marca de um escritor de segunda categoria: não pode
sugerir aqui ou parar ali. Toda sua força se concentra em manter a cena diante de nossos
olhos, seu brilho e sua credibilidade. A superfície é tudo, não há nada além.
Nossa capacidade de acreditar, porém, não está nem perto de se exaurir. É só
uma questão de encontrar algo que a reviva. Nem Shakespeare, nem Shelley, nem
Hardy; talvez Trollope, Swift e Maupassant. Acima de tudo, Maupassant é o mais
promissor do momento, pois aproveita a grande vantagem de escrever em francês. Não
que o mérito seja dele, pois temos mais incentivo para ler em uma língua cujas arestas
não foram desgastadas pelo nosso uso diário. As próprias sentenças se formam de
maneira definitivamente mais sedutora. As palavras formigam e brilham. Quanto ao
inglês, ai de mim, é nossa língua, vulgarizada pelo manuseio e pela exposição e talvez
não seja tão desejável. Além disso, cada uma dessas historietas compactas tem um quê
de pólvora, artisticamente organizadas para explodirem quando pisamos nelas. As
últimas palavras são sempre altamente inflamáveis. Lá vão, bang! Há luz para nós no
deslumbramento descompromissado de alguém com sua mão levantada, em alguém
escarnecendo, dando as costas, pegando ônibus. É como se essa ação insignificante, seja
qual for, resumisse toda a situação para sempre.
A realidade que Maupassant nos apresenta é sempre corpórea, sensorial: a carne
madura de uma jovem criada, por exemplo, ou a suculência da comida. Elle restait
inerte, ne sentant plus son corps, et l’esprit disperse, comme se quelqu’un l’eût
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d’échiqueté avec un de ces instruments don’t se servent les cardeurs pour effiloquer la
laine des matelas.160 Ou suas lágrimas secaram em seu rosto comme des gouttes d’eau
sur du fer rouge.161 Tudo é concreto, tudo visualizado. É um mundo em que podemos
acreditar com nossos olhos, narizes e sentidos. Contudo, é um mundo que produz
gotinhas de amargura todo o tempo. Isso é tudo? E se for, é suficiente? Devemos, então,
acreditar nisso? Questionamos. Agora que temos a verdade nua e crua, uma sensação
desagradável, que devemos analisar antes de continuarmos, parece atrelada a ela.
Suponha que uma das condições de as coisas serem como são é serem
desagradáveis. Teremos força suficiente para suportar o desagradável pelo prazer de
acreditar nelas? Não ficamos de algum modo chocados com As Viagens de Gulliver,
Boule de Suif e La Maison Tellier? Não estamos sempre tentando desviar dos obstáculos
da feiúra dizendo que Maupassant e os outros como ele são toscos, cínicos e sem
imaginação, quando, de fato, é sua crueza que ressentimos? O fato de que há
sanguessugas nas pernas nuas das criadas, que há bordéis e que a natureza humana é,
fundamentalmente, fria, egoísta e corrupta? Esse desconforto diante do desagradável da
verdade é uma das primeiras coisas que desestabilizam nosso desejo de acreditar. Nosso
sangue anglo-saxão talvez nos tenha dado um instinto de que a verdade é, se não bela,
pelo menos agradável ou virtuosa quando contemplada. Observemos a verdade
novamente, desta vez através do olhar de Anthony Trollope: um homem grande,
tempestuoso, que usava óculos e tinha voz alta de caçador... cuja linguagem na
sociedade masculina era, creio, tão lúgubre que não me permitiriam tomar o desjejum
com ele... que perambulava pelo país pedindo uma moeda e escrevia, como diz a lenda,
tantos milhares de palavras antes do desjejum de cada dia de sua vida. 162
Certamente, romances como Barchester Towers163 mostram a verdade, e a
verdade inglesa, à primeira vista, é quase tão desprovida de detalhes quanto a francesa,
com uma diferença: Slope é um hipócrita desajeitado asqueroso e Proudie é uma
brutamontes dominadora. O diácono é bem intencionado, mas tosco e grosseiro. Graças
160 N.T. Citação em francês no original, sem tradução para o inglês. Ela ficou parada, não sentindo mais
seu corpo, e o pensamento desordenado / espírito disperso como se alguém a tivesse dividido em
quadrados com um daqueles instrumentos que os separadores de fios têxteis usam para desfiar a lã dos
colchões. (tradução nossa)
161 N.T. Citação em francês no original, sem tradução para o inglês. (...) como gotas de água sobre ferro
quente. (tradução nossa)
162 Em Vignettes of Memory, de Lady Violet Greville, 1927. (referência do original, tradução nossa)
163 N.T. Segundo volume da trilogia Barsetshire, publicado em 1857, Barchester Towers, romance
cômico clássico sobre o embate de modos novos e antigos, foi responsável pela reputação de Trollope
entre os leitores vitorianos.
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ao vigor do escritor, o mundo no qual são os habitantes mais proeminentes gira em
torno da correria diária de alimentar e formar crianças e adorar, amplamente e com
gosto, as amarras que não deixam uma brecha sequer para escaparem. Acreditamos em
Barchester Towers como percebemos a realidade de nossas contas semanais. De fato,
não desejamos fugir das conseqüências de nossa crença, pois a verdade dos Slopes e
Proudies na noite da festa em que o vestido de Proudie rasga nas costas sob a luz de
onze lampiões a gás é inteiramente aceitável.
No auge de sua inspiração, Trollope é um novelista maior, para não dizer de
primeira linha. Sua melhor fase ocorreu quando escreveu enérgica e rapidamente a
partir das tendências da vida provinciana, entalhando, sem crueldade, em boa forma e
bom senso, os retratos de homens e mulheres bem alimentados dos anos cinqüenta 164,
de preto e sem imaginação. A sua maneira, que é moldada por eles, tem uma sagacidade
admirável, como a de um médico de família ou um advogado, extremamente
familiarizado com as fraquezas humanas para não julgá-las com tolerância e sem estar
ileso a essas fraquezas, como gostar de alguém muito mais do que de outrem sem
nenhum motivo aparente. Na verdade, embora se esforçasse para ser severo, e era o
melhor quando o fazia, Trollope não conseguiria ficar à distância sem que soubéssemos
que amava a moça bonita e odiava o farsante asqueroso com tanta veemência que
somente um puxão muito forte das rédeas o manteria na linha. É como se fosse o
anfitrião de uma festa familiar e seu leitor se tornasse, com o passar do tempo, um de
seus amigos mais íntimos, sentando-se à mesa a sua direita. Seu relacionamento se torna
confidencial.
Tudo isso complica o que era simples em Defoe e em Maupassant, que só nos
pediam diretamente que acreditássemos. Em Trollope, somos levados a acreditar através
de seu temperamento, o que estabelece uma outra relação com ele, que nos diverte, mas
também nos perturba. A verdade já não é tão verdadeira. A verdade nua e crua que é
desvelada em As Viagens de Gulliver, Boule de Suif e La Maison Tellier é apresentada
por Trollope adornada com um lindo bordado. Porém, não é desse adorno atraente da
personalidade de Trollope que vem o problema que se mostra fatal contra a verdade
sólida, bem apoiada e autenticada nos romances de Barsetshire. A própria verdade, por
mais desagradável que seja, é sempre interessante. Infelizmente, as condições para
contar histórias são sempre difíceis, demandam uma cena após a outra, um episódio
164 N.T. Anos cinqüenta do século XIX.
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apoiado no outro, uma personagem na outra, tudo equilibrado e com os mesmos valores
prevalecendo. Se nos dizem que a iluminação do palácio era a gás, devem nos dizer que
as casas nobres eram fiéis às lamparinas a óleo. O que acontecerá se, no processo de
solidificação do corpo de sua história, o romancista se vir sem acontecimentos para
narrar ou com seu poder de criação esvaziado? Deverá continuar? Sim, pois a história
deve ser terminada: a intriga desmascarada, os culpados punidos e os amantes casados
no final. O testemunho, às vezes, se torna meramente uma crônica. A verdade se perde
em um catálogo simplificado. Seria melhor deixar um vazio ou até ultrajar nosso senso
de probabilidade do que preencher os espaços com improvisação: o lado avesso da
verdade é um tecido surrado, sem graça, monótono e ressequido diante da fluidez da
imaginação. O romance estabeleceu suas ordens: consisto de trinta e dois capítulos, diz.
E quem sou eu, parecemos ouvir o humilde e sagaz Trollope questionar, com seu bom
senso costumeiro, para desobedecê-lo? E produz, valentemente, improvisações.
Se avaliarmos o que vimos com os contadores de verdades, descobriremos que é
um mundo em que nossa atenção sempre se dirige a coisas que podem ser vistas,
tocadas e experimentadas a fim de que consigamos atingir um senso aguçado da
realidade de nossa existência física. Tendo estabelecido assim nossa crença, todos os
contadores de verdades juntos arquitetam que a solidez deve ser estremecida pela ação
antes de se tornar opressora. Os fatos acontecem e as coincidências complicam a
história simples. Ações existem para manter uns e outros e autores são muito
cuidadosos para não serem desacreditados ou alterarem sua ênfase na criação de
personagens diferentes de pessoas que se expressam abertamente em carreiras ativas e
aventureiras. Os contadores de verdades detêm os três poderes que dominam a ficção
em relação estável: Deus, a natureza e o homem, a fim de que enxerguemos o mundo
pela perspectiva apropriada. Um mundo em que tudo permaneça bom, não só aqui
diante de nós, mas atrás da árvore ou entre aquelas pessoas desconhecidas ao longe, na
sombra, atrás daqueles montes. Ao mesmo tempo, contar a verdade implica ser
desagradável. A mordacidade e seus limites são parte dela. Não podemos negar que
Swift, Defoe e Maupassant nos convencem mais na profundidade da feiúra do que
Trollope em sua afabilidade. Por essa razão, ao contar a verdade um autor desvia-se,
facilmente, para o satírico, que caminha lado a lado com os fatos e os imita, como uma
sombra que só é um pouco mais curvada e angular do que o objeto que representa.
Mesmo assim, em seu estado perfeito, quando podemos acreditar
completamente, nossa satisfação é plena. Podemos afirmar que, embora outros estados
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melhores ou mais exaltados possam existir, não há nenhum que torne esse desnecessário
ou aquele excedente. Porém, contar a verdade traz consigo uma fraqueza que é aparente
no trabalho de escritores menores e de mestres exauridos; contar a verdade
provavelmente se degenera em um relatório superficial de fatos: a repetição de que foi
na quarta-feira que o vigário foi à reunião de sua mãe, na qual estavam presentes a
senhora Brown e a senhorita Dobson, que chegaram na sua charrete puxada por um
pônei. Tal afirmação, o leitor logo percebe, não tem nada de verdade a não ser o exterior
respeitável.
Lentamente, levando em consideração o relatório superficial dos fatos, a falta de
metáforas, a simplicidade da linguagem e o fato de que acreditamos mais quando a
verdade nos é mais dolorosa, não é de se estranhar que tomemos consciência de um
outro desejo que cresce espontaneamente e reveste aquelas fissuras deixadas nos
grandes monumentos dos contadores de verdades. Somos arrebatados pelo desejo de
distanciamento, música, sombra e espaço. Ao anoitecer, o coletor de lixo pegou sua
garrafa quebrada, atravessou a rua e começou a perder solidez e detalhamento ao longe.
Os Românticos
Era uma manhã de novembro e os penhascos que se erguem do oceano estavam
suspensos na bruma espessa e pesada. Os portões da antiga torre, meio em ruínas, na
qual lorde Ravenswood vivera os últimos e mais atormentados anos de sua vida, se
abriram para que seus restos mortais fossem levados a uma morada ainda mais lúgubre
e solitária.
Nenhuma mudança poderia ser mais completa. O coletor de lixo se tornou um
lorde, o presente se transformou em passado, o discurso anglo-saxão feioso se tornou
mais glamuroso e mais silábico. Em vez de potes e panelas, bicos de gás e coches
aconchegantes, temos uma torre meio em ruínas e penhascos, o oceano e novembro
cheio de brumas. Esse passado e a ruína, o lorde e o outono, o oceano e o penhasco são
tão agradáveis quanto sair de uma sala abafada e barulhenta para o ar livre da noite. A
suavidade curiosa e o idílio de Bride of Lammermoor, a atmosfera das charnecas
enferrujadas e de ondas quebrando, a escuridão e a distância realmente parecem se
somar a outra cena mais verdadeira, que ainda trazemos na memória, e dar-lhe
completude. Depois da tempestade, a bonança, depois do clarão, a frieza. Os contadores
de verdades tinham muito pouco amor, ao que parece, pela natureza, que era usada
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quase sempre como obstáculo a enfrentar ou como pano de fundo, não esteticamente por
contemplação ou por qualquer papel que poderia exercer nos assuntos das personagens
áridas. Afinal a cidade era seu habitat natural. Vamos compará-los em qualidades mais
essenciais: como tratam as pessoas, por exemplo. Lá vem uma menina meio trôpega em
nossa direção, apoiada de leve no braço de seu pai:
Os traços, ainda com certo ar de menina, de Lucy Ashton são especialmente
bonitos e foram concebidos para expressar paz de espírito, serenidade e indiferença ao
brilho superficial dos prazeres mundanos. Seus cachos, que eram de um dourado irreal,
dividiam-se na fronte de brancura especial como um vislumbre do brilho do sol pálido
e entrecortado sobre um monte coberto de neve. A expressão de compostura era gentil,
suave, tímida e feminina ao extremo, parecia encolher-se diante do olhar mais casual
de um estranho do que apreciar sua admiração.
Ninguém poderia parecer-se menos com Moll Flanders ou com a senhora
Proudie. Lucy Ashton é incapaz de agir ou controlar a si mesma. Um touro corre em sua
direção e ela afunda no solo, um trovão ressoa e ela desmaia. Ela vacila a cada
palavrinha de cerimônia ou polidez: Oh, se o senhor é um homem, se for um cavalheiro,
ajude-me a encontrar meu pai. Poderíamos dizer que ela não tem nenhum caráter além
do tradicional: para seu pai é dedicada, para seu amante, recatada, para os pobres,
benevolente. Comparada a Moll Flanders, é uma boneca com serragem nas veias e cera
na face. Ainda assim, somos absorvidos pela leitura e nos familiarizamos com suas
proporções. Percebemos, por fim, que qualquer coisa mais individualizada, excêntrica
ou pontual enfatizaria o que não queremos. Esse espectro adelgaçado ronda o cenário e
é parte dele. Ela e Edgar Ravenswood são importantes para manter esse mundo
romântico com suas formas cruas, para prendê-las com o tema do amor infeliz que é
necessário para manter todo o restante. O mundo a que se apegam tem suas próprias leis
e também ignora ou elimina tão drasticamente quanto o mundo real. Há sentimentos de
extrema exaltação: amor, ódio, ciúme, remorso e, por outro lado, racismo e simplicidade
exacerbada. A retórica dos Ashtons e Ravenswoods se completa com o humor dos
camponeses e a tagarelice das mulheres do vilarejo. O verdadeiro romântico nos joga da
terra para o céu. O grande mestre da ficção romântica, Walter Scott, usa essa liberdade
por completo. Ao mesmo tempo, desaprovamos a melancolia que ele evoca como, por
exemplo, em Bride of Lammermoor. Rimos de nós mesmos por termos nos emocionado
tanto com o sistema tão absurdo. Contudo, antes de imputarmos esse defeito ao
romance, devemos considerar se a falha não é de Scott. Esse homem de mente
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preguiçosa era bem capaz, com o impulso de preencher um ou dois capítulos
convencionalmente, de utilizar uma fonte de frases vazias ou jornalísticas que, por mais
charme próprio que tivessem, negligenciariam ainda mais nossa atenção.
Descuido nunca foi o problema de Robert Louis Stevenson. Era cuidadoso,
cuidadoso ao extremo: um homem que combinava inusitadamente a psicologia de
menino com a extrema sofisticação do artista. Mesmo assim, obedecia ainda mais
implicitamente do que Walter Scott às leis do romanesco. Stevenson estabelece a cena
no passado, mantém suas personagens sempre ameaçadas sob a ponta de uma espada
por causa de alguma aventura desesperada e encobre a tragédia com humor
despretensioso. Não há dúvidas de que sua consciência e seriedade como escritor lhe
renderam uma boa colocação. Abra The Master of Ballantrae em qualquer página que
só encontrará desgaste pelo uso. Por outro lado, o tecido de Bride of Lammermoor está
cheio de falhas, rasgos remendados, costurados às pressas. Em Stevenson, o romanesco
é tratado com seriedade e permeado de todas as vantagens da arte literária mais
refinada, o que resulta em nunca considerarmos quão absurda a situação é ou
concluirmos que não temos mais emoções com as quais suprir a demanda da história.
Obtemos, ao contrário, uma história firme e aceitável, que não nos trai jamais, que é
corroborada, concretizada, de boa qualidade em cada detalhe. Cada cena nos é mostrada
com precisão e astúcia, como se o trabalho do escritor fosse livrar sua essência do
envoltório.
Foi como ele disse: não havia qualquer movimento de respiração, um
estrangulamento de geada sem vento havia comprometido o ar e ao continuarmos
adiante à luz de velas, a escuridão era como um teto sobre nossas cabeças. Ou, ainda: o
rigor do inverno durou toda a estação. Um frio sufocante, pessoas se movimentando
como chaminés enfumaçadas, uma lareira enorme atulhada de lenha no corredor,
alguns dos pássaros da primavera que já haviam partido para o norte, para nossa
região, sitiando as janelas da casa ou saltitando pela relva congelada, como seres
atormentados.
Um estrangulamento de geada... Pessoas se movimentando como chaminés
enfumaçadas. Podemos pesquisar os romances Waverley em vão na busca por uma
escrita tão densa assim. Separadamente, essas descrições são adoráveis e brilhantes. A
falha está em algum outro ponto, no todo do qual fazem parte. Algo parece estar
faltando, pois, naqueles minutos críticos que decidem o destino de um livro que
terminamos de ler e cujo conteúdo pode ser contemplado como um todo pela mente.
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Talvez seja o fato de o detalhe ser proeminente demais. A mente é capturada por essa
ela passagem descritiva, pela exatidão curiosa da frase, porém o ritmo e o alcance da
emoção que a história provoca não são satisfeitos. Sofremos restrições quando
deveríamos oscilar livremente. Nossa atenção é presa por um nó de laço ou um
refinamento de traços quando, na verdade, só desejamos um corpo nu sob o céu.
Scott repele nosso gosto de mil maneiras. Mas a crise, este é o ponto, em que o
sotaque cai e modela o livro, é certa. Desajeitado, descuidado como é, ele se recompõe
no momento crítico para desferir o golpe necessário que dá ao livro sua vivacidade.
Lucy senta-se tagarelando acomodada como uma lebre sobre sua forma. Pergunta:
Então você assumiu sua noiva atraente?, deixando seu discurso afetado de grande dama
de lado e assumindo um tom mais popular. Ravenswood afunda em areia movediça.
Somente um vestígio de seu destino apareceu. Uma enorme pena negra havia sido
retirada de seu chapéu e as ondas encrespadas da maré alta a levaram para os pés de
Caleb. O velho a pegou, secou e colocou junto ao peito. Nessas duas passagens as mãos
do autor estão direcionando o livro. Em The Master of Ballantrae, porém, embora cada
detalhe seja exato e elaborado a fim de, separadamente, cativar nossa admiração, não há
essa conclusão final. O que deveria ter ajudado, em retrospectiva, parece ser alheio ao
romance. Lembramo-nos de detalhes e não do todo. Lorde Durisdeer e o Master morrem
juntos, mas quase não percebemos. Nossa atenção foi desperdiçada em algum outro
ponto.
Parece que o espírito romântico é exigente: se vê um homem atravessar a rua sob
a iluminação pública e perder-se nas sombras da noite, imediatamente dita que direção o
escritor deve seguir. Não queremos saber muito sobre o tal homem, dirá o espírito
romântico; queremos que expresse nossa capacidade de sermos nobres e aventureiros,
experimente lugares selvagens e sofra os extremos da sorte, que seja dotado de
juventude e distinção e aliado dos campos, ventos e pássaros selvagens. Além disso,
deverá ser um amante, não de modo introspectivo e minucioso, mas abertamente. Seus
sentimentos devem fazer parte do cenário, os leves tons de marrom e azul dos bosques
distantes e das plantações devem estar dentro dele. E talvez uma torre, também, e um
castelo onde floresce a boca de leão. Acima de tudo, o espírito romântico exige uma
crise aqui, outra acolá, em que a onda que invade o peito arrebenta. Scott contempla
esses sentimentos mais do que Stevenson, embora com qualificação suficiente para
fazer com que nos aprofundemos na questão do romance, seu escopo e suas limitações.
A esta altura, talvez fosse interessante lermos The Mysteries of Udolpho, sobre o qual,
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considerado um absurdo gótico, já se riu tanto. É difícil encará-lo com olhar neutro;
sempre o analisamos com a expectativa de ridicularizá-lo. Porém, quando encontramos
sua beleza, alcançamos o outro extremo e apreciamos trechos poéticos. A beleza e o
absurdo estão presentes no romance, que é um bom teste da atitude romântica, pois
Radcliffe leva a liberdade do romance ao extremo. Enquanto Scott volta cem anos no
tempo para conseguir o efeito do distanciamento, Radcliffe volta trezentos. Com um só
golpe, livra-se de um anfitrião de desarmonia e aproveita sua desmesurada liberdade.
É seu desejo, enquanto romancista, descrever cenários, seu grande dom. Assim
como todo escritor verdadeiro, enfrenta todos os obstáculos para atingir seus objetivos.
Somos trazidos para um imenso mundo vazio e airado. Algumas pessoas com mentes,
maneiras e discurso inteiramente representativos do século XVIII passeiam por vastos
jardins, ouvem rouxinóis cantarem apaixonadamente pelos bosques no meio da noite,
assistem ao pôr do sol sobre a lagoa de Veneza e aos tons de rosa que recaem sobre os
Alpes longínquos e as torres azuladas de um castelo italiano. Essas pessoas, quando
bem nascidas, têm o mesmo sangue dos abastados de Scott, silhuetas atenuadas e
formais que, curiosamente, apesar de também serem ensimesmadas, insignificantes e
insípidas, emergem harmoniosamente da trama.
Mais uma vez percebemos a força que os românticos adquirem por obliterarem
os fatos. A solidez do chão desaparece, outras formas se tornam aparentes e outros
sentidos se aguçam com o esmorecimento da luz. Tornamo-nos conscientes do perigo e
da escuridão de nossa existência e a realidade confortável se torna um fantasma
também. Fora de nosso refúgio ouvimos o vento enraivecido e as ondas arrebentarem.
Nesse estado nossos sentidos estão tensos e apreensivos, sons que normalmente não
ouviríamos são audíveis. As cortinas farfalham. Algo na quase penumbra parece se
mover. Estará vivo? O que será? O que estará procurando aqui? Radcliffe consegue nos
fazer sentir tudo isso, principalmente porque é capaz de nos conscientizar da paisagem
e, assim, nos induzir a um estado de imparcialidade favorável ao romance. Em
Radcliffe, porém, mais diretamente do que em Scott e Stevenson, o absurdo é evidente,
as engrenagens do sistema são visíveis e o processo é audível. As exigências dos
românticos estão mais claras.
Tanto Scott quanto Stevenson, com o puro instinto da imaginação, mostram a
comédia rústica e o franco dialeto escocês. Eles certamente adivinharam que a mente se
desdobraria naquela direção quando relaxasse. Para Radcliffe, por outro lado, tendo
chegado ao limite, é impossível voltar a trás. Tenta nos consolar com passagens
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cômicas, naturalmente colocadas nas falas de Anette e de Ludovico, os criados. A
ruptura é muito abrupta, porém, para suas limitações de senhora da alta classe, e ela
destrói os grandes momentos e a bela atmosfera com um reflexo pálido de romance, que
é mais entediante do que qualquer obscenidade. Os mistérios se acumulam. Corpos
assassinados se multiplicam, mas ela é incapaz de criar a emoção com a qual devemos
percebê-los. O resultado que ali jaz é inacreditável e, portanto, ridículo. Cai o véu, lá
está a figura escondida. Há um rosto decomposto e os vermes se contorcem. Nós rimos.
O poder que habita toda a tessitura de um romance esmorece: as sentenças, seu
tamanho e sua forma, as inflexões, os maneirismos. Tudo o que era usado com tanto
orgulho e naturalidade sob o impulso de uma emoção verdadeira se torna rançoso,
forçado e indesejável. Radcliffe escorrega, trôpega, para o estilo desgastado de Scott e
embroma página após página, num estilo que pode ser ilustrado por este exemplo:
Emily, que sempre se esforçara para se comportar de acordo
com os princípios mais corretos e cuja mente era bem sensata,
não só em relação ao que era moralmente justo, mas sobre
qualquer coisa que fosse bela no caráter feminino, estava
chocada com tais palavras.
E assim continua até que afundamos e nos afogamos na insípida maré. Contudo,
Udolpho passa esse teste. Provoca uma emoção tão distinta quanto especial, de acordo
com nossa definição pessoal de emoção.
Se enxergamos agora onde o risco do romance reside, como é difícil sustentar o
estado de espírito, como o alívio da comédia é necessário, como a distância das
experiências das pessoas comuns e a estranheza de seus elementos se tornam ridículas,
vemos também que essas emoções são, em si mesmas, jóias sem preço. O romance
romântico nos proporciona uma emoção profunda e genuína. Scott, Stevenson e
Radcliffe, cada um a sua maneira, desvendam outro território da ficção, fazem aflorar
nosso desejo intenso por algo novo, o que é prova de seu poder.
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