quinta-feira, 2 de abril de 2009



Domingo, 29 de Março de 2009


CRÍTICA

Instalação cênica captura Woolf em As Ondas - Valmir Santos




A demonstração do trabalho em processo de As Ondas tem última sessão hoje. O maior desafio de Louri Santos e Simone Spoladore, que assinam adaptação e concepção, será atingir no espetáculo a experiência mística e sensorial que conseguem alcançar em equipe nessa viagem pelo romance homônimo da inglesa Virginia Woolf (1882-1941).



Fotos: Gilson Camargo, blog Olhar Comum
http://www.gilsoncamargo.com.br/blog/?p=1836
Trata-se de uma instalação cênico/sonora/musical/visual, se é que podemos condensá-la ou chamá-la assim. Para incorporar o percurso introspectivo da autora, o fluxo de pensamento que dispensa ação e diálogo, os seis personagens ganham nichos, ilhas em seis cantos do jardim do estúdio do artista plástico Marcelo Scalzo, no bairro São Francisco.

Uma banheira, o tronco de uma árvore, a janela de uma casa, o brinquedo de balanço, o buraco de um porão, um bando de jardim, enfim, são nesses espaços que os performers Chiris Gomes, Christiane de Macedo, Luthero de Almeida, Rodrigo Ferrarini e os próprios Santos e Spoladore surgem sentados, texto em punho, a ler trechos do romance ao microfone. A história é reverberada em caixas de som em vários pontos do local.
É uma leitura encorpada, digamos, atenta ao rumor da língua, seus suspiros referendados já no nome desse coletivo artístico, Companhia do Sussurro.



A noite agradável, o farfalhar das folhagens ao caminharmos pelo jardim, os banquinhos feitos de pedaços de tronco, as ilhas de luzes que atenuam a escuridão no quintal, tudo conspira para a exploração sensorial do lugar, caráter sensório inerente à estrutura de texto de Woolf, na qual os personagens despontam com discursos diretos, uns falando sobre os outros, não entre si. O ir e vir são explorados pelo espectador, estimulado a circular por entre as vozes e microcenários contidos no todo do quintal.

A música também exerce papel fundamental na abertura e no encerramento, com canções que remetem às ondas do mar, numa levada bossanovista com violão e canto ao vivo. Entre os músicos e compositores, estão Barbara Kirchiner, Octavio Camargo, Troy Rossilho, Alexandre França e Luiz Felipe Leprevost. Um vídeo em preto e branco apresenta imagens em preto e branco relativas ao tema, ondas que abraçam montanhas, crianças na orla etc.



Na parte final, os seis personagens/performers juntam-se ao redor de uma fogueira para a qual o público também converge. Na primeira noite, houve um brinde a Woolf com taças de vinho branco e trufas – sua morte ocorreu em 28 de março de 1941, justamente a data da estreia no Festival, ontem. As pessoas presentes também ganham máscaras de papel que reproduzem o rosto da escritora, em preto e branco.

Como está, As Ondas emana ímpeto dionisíaco que talvez ganhe mais relevo no futuro, uma janela de possibilidades para uma autora tão inquieta.
Trabalho em processo: As Ondas
Data: hoje, dia 29, às 21h (última apresentação)
Local: Estúdio Marcelo Scalzo
Veja a matéria sobre a peça no Festival TV


Fotos de Gilson Camargo:






quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

O Senhor Bennett e a Senhora Brown - Virgínia Woolf - Trabalho lido para os Herectics, em Cambridge, em 18 de maio de 1924.



O Senhor Bennett e a Senhora Brown
Parece-me possível, talvez desejável, que eu venha a ser a única pessoa nestasala que tenha cometido o desatino de escrever, de tentar escrever, ou mesmo de não ter conseguido escrever um romance. E quando me perguntei, estimulada por seu convite para lhes falar sobre ficção moderna,que figura demoníaca cochicharia em meu ouvido e me empurraria para a perdição, uma figurinha surgiu diante de mim. A figura de um homem, ou de uma mulher, que disse: “Meu nome é Brown. Pegue-me se puder.” Muitos romancistas passam pela mesma experiência. Certo Brown, Smith ou Jones aparece e diz do modo mais sedutor e charmoso do mundo: “Venha, pegue-me se puder.” Encantados por esta quimera, os romancistas se atrapalham livro após livro e gastam os melhores anos de suas vidas em busca dessa ilusão, recebendo muito pouco dinheiro por isso na maioria das vezes. Poucos alcançam o ente, muitos têm que se contentar com um fiapo de suas vestes ou com um fio de seus cabelos. Minha crença de que homens e mulheres escrevem romances porque são seduzidos pela criação de personagens que se impõem desse modo é corroborada por
Arnold Bennett. Diz Bennett em um de seus artigos: “Os alicerces da boa ficção estão na elaboração de personagens e em nada mais. (...) O estilo conta. A trama conta. A originalidade do ponto de vista conta. Porém, nenhum desses conta tanto quanto personagens convincentes. Se as personagens são reais, o romance tem uma chance. Se não, seu destino é o esquecimento. (...)" Bennett continua seu raciocínio para concluir que não há muitos romancistas jovens de primeira linha atualmente porque são incapazes de elaborar personagens reais, verdadeiras e convincentes. Essa é a questão que quero discutir hoje, mais com ousadia do que com discrição. Quero deixar claro o que queremos dizer quando falamos em personagem de ficção, discutir a questão da realidade levantada por Bennett, sugerir alguns motivos porque os jovens romancistas falham na criação de personagens, se é que, como afirma Bennett, falham mesmo. Esse objetivo me conduzirá por afirmações ora um tanto radicais, ora muito vagas, devido ao grau de extrema dificuldade da questão. Pensem no pouco que sabemos sobre personagem, no pouco que sabemos sobre arte. A fim de trabalhar em campo neutro, sugiro uma divisão de territórios entre os eduardianos e os georgianos. Considerarei eduardianos Wells, Bennett e Galsworthy, e georgianos Forster, Lawrence, Strachey, Joyce e Eliot. Se eu porventura utilizar a primeira pessoa, com um egocentrismo intolerável, peço, por favor, que me perdoem. Não desejo atribuir ao mundo em geral as opiniões de um indivíduo solitário, mal informado e mal orientado. Creio que todos concordarão com minha primeira afirmação: todos nesta sala julgam o caráter. Na verdade, seria impossível viver durante um ano sem um completo desastre das relações sem que praticássemos “leitura-de-caráter” com certa
habilidade. Nossos casamentos e amizades dependem disso. Nossos negócios dependem amplamente dessa leitura, além de questões do dia-a-dia que só podem ser resolvidas com sua ajuda. Agora arriscarei uma outra afirmação, talvez mais discutível, sobre a mudança de caráter do ser humano em 10 de dezembro de 1910, ou por volta dessa data.
Não estou dizendo que aconteceu como quando alguém vai ao jardim e vê que uma rosa desabrochou ou que uma galinha botou um ovo. Não. A mudança não foi repentina ou definitiva assim. Entretanto, uma mudança houve, e uma vez que é necessário sermos arbitrários, estabeleçamos a data acima do ano de 1910. Os primeiros sinais da mudança estão gravados nos livros de Samuel Butler, In the Way of All Flesh, em particular. Nas peças de Bernard Shaw também há sinais. Na vida cotidiana, há sinais. Podemos enxergar as mudanças, se me permitem uma imagem bem doméstica, no comportamento da cozinheira. A cozinheira vitoriana vivia como um imenso ser marinho tirado das escrituras, vivendo nas profundezas mais longínquas, formidável, silenciosa, obscura, inescrutável. Por outro lado, a cozinheira georgiana é uma criatura do sol e do ar fresco, entrando e saindo da sala de estar para pedir o jornal emprestado ou dar um conselho sobre um chapéu. Vocês precisam de algum outro exemplo solene do poder de adaptação da raça humana? Leia Agamemnon e veja se sua simpatia não tende, no decorrer da história, indubitavelmente para Clitemnestra. Ou ainda, considere a vida conjugal dos Carlyle e lamente o desperdício, a futilidade, tanto dele quanto dela, na tradição doméstica horrível que fez parecer direito que uma mulher talentosa ocupasse seu tempo caçando besouros e esfregando panelas em vez de escrevendo livros. Todas as relações humanas mudaram: entre patrões e empregados, maridos e esposas, pais e filhos. E quando as relações humanas mudam, há mudança na religião, no comportamento, na política e na literatura. Vamos estabelecer de comum acordo que essas mudanças aconteceram por volta de 1910.
Disse que as pessoas devem desenvolver muito a habilidade de ler o caráter se querem viver mais um ano de vida sem desastres. Porém, essa é a arte dos jovens. Na meia idade e na velhice essa arte é praticada principalmente por si mesma e pelas amizades, outras aventuras e experiências na arte da leitura do caráter são raramente vividas. Os romancistas, contudo, diferem do restante do mundo porque não deixam de se interessar pelo caráter quando já aprenderam o suficiente sobre ele em termos práticos. Vão além, sentem que há algo permanentemente interessante no próprio caráter. Quando toda a parte prática da vida foi descartada, há alguma coisa sobre as pessoas que continua a parecer importantíssima ao romancista, apesar de isso não ter qualquer efeito sobre sua felicidade, conforto ou renda. O estudo do caráter se torna uma busca absorvente: descrever o caráter é uma obsessão. Considero difícil de explicar o que os romancistas querem dizer quando falam de caráter, que impulso é esse que os instiga, com tanto poder, a dar corpo a seu ponto de vista em sua escrita.
Se me permitem, em vez de analisar e abstrair, contarei uma história, que a despeito de sua inutilidade, tem o mérito de ser verdadeira. Vou narrar uma viagem de Richmond a Waterloo, na esperança de conseguir mostrar-lhes o que quero dizer com caráter, de que vocês percebam os aspectos diferentes de cada uma das personagens e os perigos horríveis que as espreitam quando tentamos descrevê-las. Uma noite, há algumas semanas, atrasada, entrei no primeiro vagão do trem a que tive acesso. Ao sentar-me, tive a sensação estranha e desagradável de ter
interrompido a conversa de duas pessoas que já se encontravam no vagão. Não eram nem jovens, nem felizes. Longe disso. Eram ambos mais velhos. A mulher tinha mais de sessenta e o homem, bem mais de quarenta. Estavam sentados de frente um para o outro. O homem, a julgar por sua atitude e pelo rubor da face, estivera inclinado na direção dela falando enfaticamente. Voltara a seu lugar e estava calado. Eu o atrapalhara e ele estava irritado. A senhora, porém, a quem chamarei de senhora Brown, pareceu bastante aliviada. Era uma dessas mulheres muito asseadas, com tudo muito surrado, cujo extremo alinho – tudo abotoado, fechado, enlaçado, consertado e escovado – sugere pobreza mais extrema do que farrapos e sujeira. Havia um quê de aflição nela: um olhar sofrido, apreensivo. Além de tudo, era extremamente pequena. Seus pés, em botinhas limpas, mal tocavam o chão. Achei que não tinha quem cuidasse dela, que
tinha que tomar decisões sozinha, que, tendo sido abandonada ou enviuvado há muitos anos, levara uma vida de ansiedade e opressão, educando um filho único, que,
promissor ou não, estaria enveredando pelo mau caminho. Tudo isso me passou pela cabeça como um raio enquanto me sentava, muito pouco à vontade, como a maioria das pessoas que viajam com outras, a não ser que já as conheçam. Olhei para o homem.
Tinha certeza de que não tinha nenhuma relação com a senhora Brown. Tinha um biotipo maior, mais corpulento e menos refinado. Imaginei que fosse um negociante do norte, muito provavelmente um respeitável comerciante de milho, vestido de boa sarja azul, com canivete, um enorme lenço de seda e uma mala de couro reforçada. Tinha, porém, claramente, um assunto desagradável para tratar com a senhora Brown. Algo secreto, sinistro talvez, que não pretendia discutir na minha presença. “Pois é, os Croft tiveram muito pouca sorte com os empregados”, disse Smith (vou chamá-lo assim) pensativamente, voltando a algum assunto anterior na intenção de manter as aparências. “Pobre gente”, disse a senhora Brown, um tanto condescendente. “Minha avó teve uma e mpregada que chegou a sua casa aos quinze anos e ficou até os oitenta.” Disse isso com o orgulho meio ferido e de modo agressivo, para nos impressionar, talvez. “Não acontece com muita freqüência hoje em dia”, respondeu Smith em tom conciliatório. Ficaram em silêncio. “Estranho não abrirem um clube de golfe lá. Achei que um dos jovens faria isso”, disse Smith para quebrar o silêncio que obviamente o deixava nervoso. A senhora Brown não se deu o trabalho de responder. “Que mudanças estão acontecendo neste lado do mundo!”, disse Smith olhando pela janela e furtivamente para mim ao fazê-lo. Era claro, pelo silêncio da senhora Brown e pela afabilidade nervosa de Smith, que ele exercia algum poder sobre ela, de maneira bastante desagradável. Poderia ser a ruína de seu filho ou algum episódio doloroso de seu passado, ou do de suas filhas. Talvez a senhora Brown estivesse viajando a Londres para assinar algum documento e transferir uma propriedade. Certamente contra sua vontade, estava nas mãos de Smith. Estava começando a sentir uma pena incrível dela quando de repente e inconseqüentemente, ela disse:
“Você pode me dizer se um carvalho morre quando suas folhas são comidas por lagartas dois anos seguidos?” Falava claramente, de modo preciso, numa voz educada e inquisitiva. Smith estava chocado e ao mesmo tempo aliviado por ter um tema tão seguro sobre o qual discorrer. Falou-lhe muito sobre pragas e insetos, rapidamente, que tinha
um irmão em Kent que administrava uma fazenda de cultivo de frutas. Contou-lhe o que os fazendeiros fazem todos os anos em Kent, etc., etc. Enquanto falava, algo muito estranho ocorreu: a senhora Brown pegou seu lencinho branco e começou a enxugar levemente os olhos. Estava chorando. Continuou a ouvi-lo com compostura. Ele, porém, continuou falando um pouco mais alto e um pouco mais zangado, como se a tivesse visto chorar muitas vezes antes daquela, como se fosse um hábito doloroso. Finalmente ele se irritou. Parou abruptamente, olhou pela janela, inclinou-se na direção dela, como estava quando entrei, e disse-lhe em tom intimidador, como se não fosse mais tolerar aquele despropósito: “Sobre aquele assunto que discutíamos. Tudo certo? George estará lá na terça?” “Não nos atrasaremos”, respondeu a senhora Brown, recompondo-se com soberba dignidade. Smith não disse nada. Levantou-se, abotoou o casaco, pegou sua mala e saltou do trem antes mesmo de termos parado na Clapham Junction. Conseguira o que queria, mas estava envergonhado de si mesmo. Estava feliz de poder sair de perto da senhora Brown. A senhora Brown e eu ficamos sozinhas. Sentada no canto oposto ao meu, muito limpa, muito pequena, bem estranha, sofria imensamente. Causava uma impressão opressiva. Inundava tudo como uma corrente de ar, como cheiro de queimado. De que se compunha essa impressão tão opressiva e peculiar? Uma infinidade de idéias incongruentes e irrelevantes povoam a mente nessas ocasiões. Vê-se a senhora Brown no centro de todos os tipos de situações. Pensei nela numa casa de praia com muitos ornamentos extravagantes: ouriços, barcos em garrafas de vidro. As medalhas do marido sobre o console da lareira. Entrava e saía da sala, segurando as bordas dos encostos das cadeiras como as aves fazem no poleiro, tirando restos de refeições dos pratos, aproveitando seus longos e silenciosos olhares. As lagartas e os carvalhos pareciam trazer tudo aquilo implícito. Nesse momento, Smith invade essa vida fantástica e regrada. Eu o vi entrar como o vento num dia de ventania. Entrou comviolência, agressivamente. Seu guarda-chuva encharcado fez uma poça no corredor. Trancaram-se. Então a senhora Brown enfrentou a terrível revelação e tomou sua decisão
heróica. Cedo, antes da alvorada, arrumou a mala e a carregou sozinha para a estação. Não permitiria que Smith a tocasse. Tinha o orgulho ferido, o vento a jogara para longe de seu porto seguro. Vinha de uma linhagem de elite, que tinha empregados, mas esses detalhes podiam esperar. O mais importante era perceber seu caráter, esgueirar-se em seu ambiente. Não tive tempo para explicar por que senti algo trágico e heróico, ainda que com um lampejo de fantástico, antes de o trem parar. Vi-a desaparecer, carregando sua mala no burburinho da imensa estação. Parecia muito menor e muito tenaz e ao mesmo tempo muito frágil e heróica. Nunca mais a vi e jamais saberei o que houve com ela. A história termina sem mostrar sua relação com o assunto tratado. Porém, não lhes contei tudo isso só para exemplificar minha ingenuidade ou os prazeres de viajar de Richmond a Waterloo. Gostaria que percebessem o seguinte: aqui está uma personagem se impondo sobre uma pessoa. Aqui está a senhora Brown pressionando alguém a, quase automaticamente, escrever um romance sobre ela. Creio que todos os romances germinam a partir de uma senhora sentada no canto oposto ao seu do vagão. Creio também que todos os romances lidam com personagens e que existem para expressá-las, não para pregar doutrinas, entoar canções ou celebrar as glórias do império britânico. Creio que a forma do romance, tão confusa, loquaz e sem força dramática; tão rica, flexível e viva, evoluiu.
Referi-me a expressar personagens, o que pode ser imediatamente interpretado de diversas maneiras. Por exemplo, o caráter da velha senhora Brown vai nos afetar dos modos mais diferentes, de acordo com nossa idade e com nosso país de origem. Seria muito fácil escrever três versões do incidente no trem: uma inglesa, uma francesa e uma russa. O escritor inglês transformaria a velha senhora em uma personagem. Mostraria suas esquisitices e maneirismos, seus botões e marcas de expressão, seus laçarotes e verrugas. Sua personalidade dominaria o livro. Um escritor francês apagaria tudo isso. Sacrificaria o indivíduo senhora Brown para nos oferecer uma visão mais ampla da natureza humana, para construir um todo mais abstrato, proporcional e harmonioso. O russo perfuraria a carne, revelaria a alma – somente a alma, vagando pela Waterloo Road, questionando implacavelmente a vida, de modo que tal questão ecoasse em nossos ouvidos mesmo depois de terminada a leitura do livro. Em suma, além de nossa idade e origem, há o temperamento do autor a considerar. Você vê um aspecto da personagem e eu vejo outro. Diz que significa isso e digo que quer dizer aquilo. Quando se considera a literatura, cada um tem uma seleção ainda mais profusa de interpretações de acordo com princípios muito próprios. Desse modo, pode-se retratar a senhora Brown de uma infinita variedade de formas, segundo a idade, a origem e o temperamento do autor.
Devo, agora, recordar o que o senhor Bennett afirma: somente quando as personagens são reais é que um romance tem chances de sobreviver. Caso contrário, deve morrer. Pergunto, todavia, o que é realidade? Quem são os juízes da realidade? Uma personagem pode ser real para o senhor Bennett e um tanto irreal para mim. Por exemplo, no artigo do qual tirei as citações, o senhor Bennett diz que considera Watson em Sherlock Holmes real. Para mim, Watson não passa de um saco cheio de feno, um manequim, uma figura divertida. Assim é, de personagem em personagem, de livro em livro. Não há nada sobre o que as pessoas divirjam mais do que a realidade das personagens. Especialmente nos livros contemporâneos. Ampliando o foco, creio que o senhor Bennett está perfeitamente correto. Se observarmos os romances considerados grandiosos: Guerra e Paz, Vanity Fair, Tristram Shandy, Madame Bovary, Orgulho e
Preconceito, The Mayor of Casterbridge, Villette, imediatamente pensaremos em uma personagem que nos pareceu tão real (não quero dizer com isso que fossem reais, tais como a vida é) que tem o poder de nos fazer pensar não só nela, mas em todas as coisas que nossos olhos podem ver através dela – a religião, o amor, a guerra, a paz, a vida em família, as festas no campo, os pores de sol, os luares, a imortalidade da alma. Pareceme que nenhuma experiência humana foi deixada de fora em Guerra e Paz. Em todos os romances mencionados, esses grandes autores nos fizeram ver o que queriam que enxergássemos através do olhar de alguma personagem. Se não fizessem assim, seriam poetas, historiadores ou panfletários, não romancistas. Analisemos o que o senhor Bennett afirma na seqüência: não há grandes romancistas entre os georgianos porque não conseguiam criar personagens reais, verdadeiras e convincentes. Não posso concordar. Há razões, desculpas e possibilidades
que, acredito, revelam outras facetas desse caso. Parece-me, pelo menos, mas tenho plena consciência que este é um assunto sobre o qual provavelmente tenho preconceitos, sou defensiva e míope. Meu ponto de vista será exposto na esperança que vocês o tornem imparcial, crítico e liberal. Por que é tão difícil para os romancistas atuais criarem personagens que pareçam reais não só para o senhor Bennett, mas para o mundo em geral? Por que, quando chega outubro, as editoras não conseguem publicar uma obra-prima? Certamente, uma das razões é que os homens e mulheres que começaram a escrever romances por volta de 1910 enfrentaram a grande dificuldade de não haver nenhum romancista inglês vivo para servir-lhes de modelo, com quem pudessem aprender o oficio. Conrad é polonês, o que o exime e faz com que, embora admirável, não nos seja muito útil. Hardy não escreveu um só romance desde 1895. Os romancistas mais conceituados e de maior sucesso no ano de 1910 eram, suponho, Wells, Bennett e Galsworthy. Em minha opinião, procurar essas pessoas e pedir-lhes que nos ensinem a escrever romances e criar personagens reais é exatamente igual a procurar um mestre sapateiro e pedir-lhe que nos ensine a montar um relógio. Longe de mim dar-lhes a impressão de que não admiro nem aprecio os livros deles. Para mim, têm grande valor e são, de fato, muito necessários. Há momentos em que é mais importante ter botas do que ter relógios. Deixando a metáfora de lado, creio que depois da atividade criativa da era vitoriana, era muito necessário, não só para a literatura, mas para a vida, que alguém escrevesse livros como esses de Wells, Bennett e Galsworthy. Contudo, que livros esquisitos! Às vezes me pergunto se é certo chamá-los de livros, pois deixam uma sensação estranha de vazio e insatisfação. Para completá-los parece necessário inscrever-se em alguma sociedade ou, mais desesperadamente, fazer um cheque. Tendo feito isso, a inquietação esmorece, a leitura do livro terminou e podemos colocá-lo na estante para nunca mais ser aberto. Não acontece o mesmo com o trabalho de outros romancistas. Tristram Shandy ou Orgulho e Preconceito são obras completas em si mesmas. São independentes, não aguçam o desejo de fazermos qualquer coisa a não ser lermos o livro novamente para entendê-lo melhor. A diferença talvez esteja no fato de que Sterne e Jane Austen se interessavam pelas coisas em si mesmas, pelo livro em si mesmo. Sendo assim, tudo fazia parte do livro, nada ficava de fora. Os eduardianos nunca se interessaram pela personagem ou pelo livro em si. Interessavam-se por algo além do livro. Suas obras foram livros incompletos e requeriam que o leitor fosse ativo e os terminasse praticamente sozinho. Talvez tornemos isso mais claro se tomarmos a liberdade de imaginar uma festinha no vagão do trem: Wells, Bennett e Galsworthy estão viajando para Waterloo com a senhora Brown. Como eu disse, a senhora Brown estava pobremente vestida e era muito pequena, tinha uma aparência ansiosa e perturbada. Duvido que ela fosse o que se considera uma mulher instruída. Agarrando-se a todos os sintomas da condição insatisfatória de nossas escolas primárias com uma rapidez que eu não conseguiria acompanhar, Wells projetaria instantaneamente sobre esse pano de fundo a visão de um mundo melhor, mais refrescante, mais animado, mais feliz, mais aventureiro e galante, onde vagões de trem com cheiro de mofo e velhas senhoras antiquadas não existissem, onde barcas miraculosas trouxessem frutas tropicais a Camberwell às oito horas da manhã, onde houvesse creches públicas, fontes e bibliotecas, salas de jantar e de estar, casamentos; onde todos os cidadãos fossem generosos e francos, tivessem hombridade e magnitude, fossem muito parecidos com o próprio Wells. Ninguém seria nem um pouco
parecido com a senhora Brown. Não há senhoras Brown em Utopia. Na verdade, não acredito que, em sua ânsia de fazê-la parecer o que deveria ser, Wells perderia um segundo com aquilo que ela realmente é. O que Galsworthy enxergaria? Podemos duvidar que os muros da fábrica Doulton despertariam sua imaginação? Há mulheres que produzem vinte e cinco dúzias de potes de cerâmica por dia naquela fábrica. Há mães em Mile End Road que dependem dos vinténs que aquelas mulheres recebem. Mas há patrões em Surrey que estão, nesse exato momento, fumando seus charutos enquanto o rouxinol canta. Ardendo de indignação, repleto de informações, censurando a civilização, Galsworthy só veria na senhora Brown um pote defeituoso retirado da linha e descartado.
O senhor Bennett, especial entre os eduardianos, fixaria seu olhar no carro. Certamente observaria cada detalhe com imenso cuidado. Notaria os anúncios, as imagens de Swanage e de Portsmouth, a maneira como a almofada fica saliente entre os botões dos bancos, a maneira como a senhora Brown usava um broche baratíssimo comprado no bazar Whitworth e como ela consertara as luvas: o polegar da mão esquerda havia sido substituído. Também observaria, por fim, a razão pela qual aquele trem direto de Windsor parava em Richmond para a conveniência da classe média local, que podia dar-se ao luxo de ir ao teatro embora não tivesse atingido o nível social para ter seu próprio carro. Havia ocasiões, ele contaria quais, em que alugariam um carro de alguma empresa, que ele nos diria qual. Gradualmente, ele nos encaminharia paralela e calmamente à senhora Brown e comentaria como ela herdara um pequeno aforamento,não uma propriedade absoluta, em Dachet, hipotecado ao advogado Bungay. Por que aventurar-me a inventar o senhor Bennett? Ele não é um romancista? Abri o primeiro livro dele que me caiu nas mãos: Hilda Lessways. Vejamos como ele nos faz sentir que Hilda é verdadeira e convincente, como todo bom romancista deveria fazer. “Fechou a porta delicada e controladamente, o que demonstrava o constrangimento de suas relações com a mãe. Gostava de ler Maud, era dotada do poder de sentir tudo intensamente.” 157 Até aqui, tudo bem. Com seu estilo pausado e certeiro, o senhor Bennett está tentando nos mostrar que tipo de jovem Hilda é desde as primeiras páginas do romance, onde tudo é importante.
Todavia, na seqüência ele começa a descrever, não Hilda Lessways, mas a vista que ela tem da janela de seu quarto, com a desculpa de que o senhor Skellorn, o cobrador do aluguel, vinha por aquele caminho. Ele continua:
“A comarca de Turnhill ficava atrás da casa e todo o sombrio distrito de Five Towns, do qual Turnhill é um dos extremos, ficava ao sul. Ao pé de Chatterley Wood, o canal dava voltas em curvas largas na direção da planície imaculada de Cheshire e do mar. Ao lado do canal, exatamente do outro lado da janela de Hilda, ficava um moinho de trigo que fazia tanta fumaça de tempos em tempos quanto as fornalhas e chaminés, fechando a paisagem dos dois lados. Um caminho de tijolos saindo do moinho, que separava um conjunto considerável de casas novas de seus respectivos jardins, levava
diretamente à rua Lessways, para a frente da casa da senhora Lessways. O senhor Skellorn sempre chegava por esse caminho, pois morava na última casa da longa fileira de casas do conjunto.”
Uma linha perspicaz teria sido melhor do que todas essas linhas descritivas.

Deixemos passar as descrições como lapso na labuta enfadonha do romancista. Onde está Hilda? Será possível? Ainda está olhando pela janela. Passional e insatisfeita como é, tem um interesse especial por casas. Freqüentemente compara o velho Skellorn com as casas que vê de sua janela. Portanto, as casas devem ser descritas. Prossegue o senhor Bennett: “O grupo de casas era conhecido como Freehold Villas, um nome que era fruto consciente de orgulho, tendo em vista que a maior parte da terra no distrito era dividida 157 Todas as citações de Hilda Lessways feitas por Virginia Woolf no ensaio original aparecem aqui em traduções nossas.
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em aforamentos que só poderiam ser negociados pelos proprietários mediante pagamento de multas ou consentimento de uma corte presidida por um agente do senhorio. No Freehold Villas, a maior parte dos residentes era proprietária absoluta de sua terra e detinha-se em pormenores à noite em seus jardins cheios de fuligem, em meio às camisas e toalhas ao vento nos varais. O Freehold Villas simbolizava o triunfo final da economia vitoriana, a apoteose do artesão prudente e trabalhador. Correspondia a um sonho paradisíaco da Building Society Secretary158. Era, de fato, uma conquista real. Contudo, o desprezo irracional de Hilda não permitiria que ela enxergasse isso.” Graças a Deus, exclamamos! Finalmente chegamos a Hilda! Não tão depressa. Ela pode ser isso, aquilo ou aquilo outro, mas Hilda não se entretém só olhando as casas e pensando nelas. Hilda vive em uma casa. E em que tipo de casa Hilda vive? Continua o senhor Bennett: “Era uma das duas casas do centro de uma plataforma com entradas laterais. Seu avô Lessways, o produtor de chaleiras, construíra as quatro casas. Sua casa era a
principal, obviamente, era a moradia do proprietário da plataforma. Uma das casas de canto abrigava uma mercearia, cujo jardim havia sido confiscado a fim de tornar o jardim do senhorio frivolamente maior do que o jardim das outras casas. A plataforma não era uma área de casinhas. Suas casas eram cotadas entre vinte e seis e trinta e seis libras por ano, muito além das possibilidades de artesãos, pequenos corretores de seguros e cobradores de aluguel. Além do mais, eram bem construídas, generosamente construídas. Sua arquitetura, embora modificada, mostrava vagos sinais da suavidade
georgiana. Era reconhecidamente o melhor conjunto de casas naquela parte da cidade. Vindo do Freehold Villas, o senhor Skellorn certamente vinha a um lugar superior, maior, mais liberal. De repente, Hilda ouviu a voz da mãe...” Não podemos ouvir a voz da mãe ou a de Hilda. Só conseguimos ouvir a voz do senhor Bennett nos contando tudo sobre aluguéis, aforamentos, propriedades absolutas e multas. O que será que ele pretende? Na minha opinião muito particular, sua pretensão é nos fazer imaginar por ele. Está tentando nos hipnotizar para acreditarmos que, porque criou uma casa, deve haver alguém vivendo nela. Com seu maravilhoso poder de observação, sua compaixão e humanidade grandiosas, o senhor Bennett jamais olhou para a senhora Brown em seu cantinho do vagão. Lá vai ela viajando, não de 158 As Building Societies são empresas de captação de recursos através de financiamentos e de empresas subsidiárias cujo objetivo é conceder crédito para construção civil e compra de casa própria. Funcionam, muitas vezes, em sistema cooperativista.
161 Richmond a Waterloo, mas de uma era da literatura inglesa para a próxima, pois a senhora Brown é eterna, ela é a natureza humana. A senhora Brown só se modifica na superfície; são os romancistas que entram e saem. Ela permanece lá sentada, sem que nenhum dos eduardianos tenha se preocupado em olhar para ela. Poderosos, inquisitivos e complacentes observaram o lado de fora da janela, as fábricas, as Utopias, até mesmo a decoração e o estofamento do trem. Porém, nunca olharam para ela, para a vida, para a natureza humana. Desenvolveram uma técnica de escrever romances que se adapta a seus propósitos. Criaram mecanismos e estabeleceram convenções que trabalham por eles. Mas seus mecanismos não são como os nossos, e seu trabalho não é como o nosso. Consideramos suas convenções ruins e seus mecanismos, a morte. Podem queixar-se do aspecto vago de minha linguagem e questionar o que é uma convenção, um mecanismo. O que quero dizer com: as convenções de Bennett, Wells e Galsworthy são erradas para os georgianos? A questão é de difícil acesso e tentarei um atalho. Uma convenção em literatura não é muito diferente de uma convenção comportamental. Tanto na vida como na literatura é preciso haver maneiras de aproximar, por um lado a anfitriã de sua convidada desconhecida e por outro, o escritor de seu leitor desconhecido. A anfitriã fala sobre o tempo, pois gerações de anfitriãs estabeleceram que esse é um assunto de interesse universal que todos
consideram. Começa dizendo que o mês de maio está terrível e, tendo se aproximado da convidada desconhecida, prossegue com assuntos de maior interesse. Assim também acontece na literatura. O escritor deve aproximar-se de seu leitor apresentando-lhe algo que ele reconheça, que estimule sua imaginação e o faça cooperar no momento em que tudo fica mais difícil: na intimidade. É de máxima importância que esse ponto de encontro seja alcançado facilmente, quase por instinto, às escuras, de olhos fechados. O senhor Bennett faz uso desse território comum nas passagens que citei acima. Seu
problema era nos fazer acreditar na realidade de Hilda Lessways. Sendo eduardiano, começou descrevendo minuciosamente o tipo de casa onde Hilda morava e o que ela enxergava de sua janela. A propriedade era o território comum de onde os eduardianos acreditavam ser fácil atingir a intimidade. Por mais indireta que nos pareça, essa convenção funcionou admiravelmente e milhares de romances como Hilda Lessways foram lançados no mundo por seu intermédio. Para aquela geração, naquele momento,essa convenção era ótima. Se me permitem, destruirei minha própria história, perceberão como senti profundamente a falta de uma convenção e quão sério é nosso problema quando os
162 mecanismos de uma geração são inúteis para a seguinte. O incidente no vagão do trem causou-me grande impressão. Mas como deveria transmiti-lo a alguém? Tudo o que podia fazer era relatar exatamente o que havia sido dito, cada detalhe do que vestiam, desesperadamente, por assim dizer, pois todos os tipos de cenas me passaram pela cabeça, prosseguir revirando as cenas a esmo e descrever essa impressão vívida e dominante, comparando-a a uma corrente de ar ou a cheiro de queimado. Para dizer a verdade, estava fortemente inclinada a escrever um romance em três volumes sobre o filho mais velho da senhora Brown e suas aventuras atravessando o Atlântico, sua filha e a maneira como gerenciava uma chapelaria em Westminster, o passado de Smith e suacasa em Sheffield. Porém, essas histórias me parecem as mais melancólicas, irrelevantes e fraudulentas do mundo.
No caso de escrevê-las, deveria evitar o esforço terrível de explicar o que queria dizer. Para chegar onde gostaria, deveria voltar ao passado e mais e mais. Deveria tentar essa ou aquela sentença, comparar cada palavra à imagem mentalizada, combiná-las da maneira mais exata possível e saber que, de algum modo tinha que encontrar um território comum para nós, uma convenção que não lhes parecesse muito estranha, irreal, artificial, difícil de acreditar. Admito que me esquivei dessa tarefa árdua. Deixei minha senhora Brown escapar pelos vãos entre os dedos. Não lhes contei nada sobre ela,
o que é, parcialmente, uma falha dos grandes eduardianos. Perguntei-lhes, pois são mais experientes e melhores, como poderia começar a descrever o caráter daquela mulher. Responderam que deveria dizer que seu pai tinha uma loja em Harrogate, averiguar o valor do aluguel, pesquisar os salários dos balconistas em 1878, descobrir de que sua mãe havia morrido, descrever o câncer, descrever a chita, descrever... Implorei que parassem e, sinto dizer, joguei aquele mecanismo incongruente pela janela, pois sabia que se começasse descrevendo câncer e chita, minha senhora Brown, aquela imagem a que me apego, embora não saiba como compartilhá-la, seria embotada, perderia o brilho e se perderia para sempre.
Isso é o que quero dizer com os mecanismos utilizados pelos eduardianos serem errados para os georgianos. Enfatizaram demais a manufatura dos elementos. Eles nos deram uma casa na esperança que conseguíssemos deduzir que seres humanos vivem nela. Para sermos justos, tornaram a casa muito melhor para se viver. Contudo, se acreditamos que os romances são, antes de tudo, a respeito de pessoas e não de lugares e, em segundo plano, sobre as casas onde as pessoas vivem, o que os eduardianos fizeram está errado. Desse modo, os georgianos tiveram que começar jogando fora o
163 método que estava sendo utilizado naquele momento. Foram abandonados diante da senhora Brown sem qualquer metodologia para apresentá-la ao leitor. Essa afirmativa está incorreta. Um escritor nunca está só. Sempre há o público, se não no mesmo vagão, pelo menos no compartimento vizinho. O público é um companheiro de viagem estranho, porém. Na Inglaterra, é uma criatura dócil e
sugestionável que, uma vez cativa, acreditará implicitamente no que lhe for contado repetidamente durante um certo período. Se disser com bastante convicção que todas as mulheres têm caudas e que todos os homens têm corcundas, o público aprenderá a enxergar mulheres com cauda e homens com corcundas e pensará ser revolucionário demais ou inapropriado dizer que é tudo bobagem, que macacos têm caudas e camelos têm corcundas e que homens e mulheres têm cérebros e corações, pensam e sentem. Para o público, tudo isso parecerá uma piada de mau gosto. Retomando. Eis o público inglês sentado ao lado do escritor e dizendo unanimemente que as senhoras idosas têm casas, pais, renda, empregados, bolsas de água quente. É assim que reconhecemos as senhoras idosas. Wells, Bennett e Galsworthy sempre nos ensinaram que era assim que as reconheceríamos. E a senhora Brown? Como acreditar nela? Nem sabemos se sua propriedade se chamava Albert ou Balmoral, nem quanto pagava por suas luvas, ou se sua mãe morreu de câncer ou de alguma outra doença contagiosa. Como pode estar viva? Não, ela é simplesmente um fruto de nossa imaginação. Além disso, as senhoras idosas deveriam ser feitas de aforamentos e de propriedades absolutas, não de imaginação.
O romancista georgiano estava em uma situação difícil e estranha. Havia a senhora Brown protestando que era bem diferente daquilo que as pessoas fizeram dela e seduzindo, com seus truques mais fascinantes e o vislumbre efêmero de seu charme, o romancista a socorrê-la; havia os eduardianos oferecendo mecanismos apropriados para construirmos e demolirmos casas. Havia também o público britânico sustentando que deveriam ver a bolsa de água quente primeiro. Enquanto isso, o trem seguia para a estação onde todos nós deveríamos saltar. Tal foi, em minha opinião, a situação difícil enfrentada pelos jovens georgianos por volta de 1910. Muitos deles, em especial Forster e Lawrence, desperdiçaram seus primeiros trabalhos porque, em vez de jogarem os velhos mecanismos fora, tentaram utilizá-los. Tentaram chegar a um acordo. Tentaram combinar sua impressão sobre a estranheza ou a insignificância de alguma personagem com o conhecimento das leis das 164 fábricas de Galsworthy e o conhecimento de Bennett sobre Five Towers. Tentaram, mas tinham uma consciência muito aguçada e irresistível da presença da senhora Brown e de suas peculiaridades para continuar tentando por muito tempo. Algo deveria ser feito a qualquer custo, seja da própria vida, de uma das partes do corpo ou de uma propriedade valiosa. A senhora Brown deveria ser resgatada, expressada, restabelecida em suas relações com o mundo antes que o trem parasse e ela desaparecesse para sempre. Então a pancadaria começou. É o que ouvimos de todos os lados, de poemas e romances e biografias, até mesmo de artigos de jornal e de ensaios. Ouvimos os ruídos de coisas caindo e quebrando, de choques e de destruição. São os sons que prevalecem na era georgiana. Bem melancólicos, se lembrarmos dos dias melodiosos que tivemos no passado com Shakespeare, Milton, Keats e mesmo com Jane Austen, Thackeray e Dickens, e se pensarmos a que alturas a linguagem pode chegar quando é livre e não implume e ranzinza como uma águia cativa. De acordo com esses fatos, com esses sons nos ouvidos e essas imagens na cabeça, não vou negar que o senhor Bennett tem um quê de razão quando reclama que nossos escritores georgianos são incapazes de nos fazer acreditar que suas personagens são reais. Sou forçada a concordar que não nos oferecem três obras primas imortais todo outono, com regularidade vitoriana. Porém, em vez de ficar deprimida, estou animada, pois esse estado de coisas é, creio, inevitável sempre que a convenção deixa de ser o meio de comunicação entre escritor e leitor e se torna um obstáculo ou impedimento, seja para a gélida velhice ou para a juventude imatura. No presente momento, estamos sofrendo não da decadência, mas da falta de um código de maneiras que escritores e leitores aceitem como prelúdio de uma relação mais excitante e amigável. A convenção literária do tempo é tão artificial – temos que falar sobre o clima durante toda a visita – que, naturalmente, os fracos são tentados a infringi-la e os fortes são levados a destruíla, tanto suas fundações quanto as regras da sociedade literária. Os sinais disso estão claros em todos os lugares. A gramática é violada e a sintaxe desintegrada, como quando um menino passa o final de semana com uma tia e rola sobre o canteiro de gerânios por puro desespero enquanto as solenidades do sabbath se desenrolam lentamente. Os autores mais maduros não se entregam a tais exibições levianas de seu tédio. A sinceridade dos jovens é desesperada e sua coragem tremenda; simplesmente não sabem se usam o garfo ou os dedos. Sendo assim, ao lermos Joyce e Eliot ficaremos
chocados com a indecência do primeiro e com a obscuridade do segundo. A indecência de Joyce em Ulysses me parece consciente e calculada por um homem desesperado que 165 sente que deve quebrar as janelas para poder respirar. Há momentos, quando a janela está quebrada, em que ele é magnífico. Que desperdício de energia! Que estúpida a indecência quando não resulta da fluidez de uma energia extremamente abundante ou da selvageria, mas de um ato determinado e patriótico de um homem que precisava de ar fresco! Novamente sobre a obscuridade de Eliot. Em minha opinião, ele escreveu alguns dos versos mais adoráveis da poesia moderna. Mas como ele é intolerante com os usos e com a polidez da sociedade: respeito pelos mais fracos, consideração pelos insossos! Enquanto me enterneço com a intensa beleza encantadora de um de seus versos, reflito se devo lançar-me às cegas e perigosamente para o próximo. E assim, de verso em verso, leio como uma acrobata voa arriscadamente no trapézio. Devo confessar que imploro pelo velho decoro e invejo a indolência de meus ancestrais que, em vez de rodar loucamente pelo ar, sonhavam calmamente ao ler um livro sob a sombra. Mais uma vez. Nos livros de Stratchey, Eminent Victorians e Queen Victoria, o esforço e a
tensão de escrever contra a corrente do momento são visíveis. São muito menos perceptíveis, é claro, pois Stratchey elaborou um código muito particular, muito discreto de maneiras baseado em material do século XVIII, que lhe permite sentar-se à mesa com a elite e dizer muitas coisas sob a roupagem desse código especial. Se ele não tivesse esse aparato, certamente teria sido escorraçado da sala de jantar. Ainda assim, se compararmos Eminent Victorians com alguns dos ensaios de Lord Macaulay, mesmo percebendo que ele está sempre errado e Stratchey sempre certo, também percebemos corpo, ímpeto e riqueza nos ensaios de Macaulay que demonstram todo o suporte de uma era. Sua força foi dirigida totalmente para seu trabalho, não houve nenhum desvio com propósito de dissimular ou converter. Porém Stratchey teve que nos abrir os olhos, buscar e alinhavar uma maneira engenhosa de escrever antes de nos fazer enxergar. Conseqüentemente, o esforço belíssimo, embora dissimulado, tirou muito da força de seu trabalho e limitou seus horizontes.
Por todas essas razões devemos nos reconciliar com um momento de falhas e fragmentos. Devemos refletir que, onde tanta energia é gasta buscando maneiras de dizer a verdade, a própria verdade está fadada a nos atingir um tanto exaurida e em condições caóticas. Ulysses, Queen Victoria e Mr Prufrock, para relembrar alguns dos nomes dados à senhora Brown recentemente, estão um pouco pálidos e desgrenhados quando os salvadores alcançam a senhora Brown. É o som de seus machados que ouvimos, vigoroso e estimulante, a não ser que queiramos dormir quando a 166 generosidade da Providência nos oferta um grupo de escritores ansiosos e capazes de satisfazer nossas necessidades.
Tentei, em detalhes um tanto tediosos, receio, responder a algumas das questões que formulei no início. Relatei algumas das dificuldades que, em minha opinião, os escritores georgianos têm que enfrentar em todos os sentidos. Procurei eximi-los de responsabilidade. Para terminar, aventuro-me a lembrar-lhes de suas obrigações e responsabilidades como participantes dessa aventura de escrevermos livros e de sermos companheiros de viagem da senhora Brown. Ela é tão visível para vocês que permanecem calados quanto para nós que contamos histórias sobre ela. No decorrer da última semana, todos vocês tiveram experiências mais estranhas e interessantes do que essa que tentei descrever, ouviram conversas que os encheram de assombro. Foram dormir à noite aturdidos com seus sentimentos. Em um só dia milhares de idéias passaram por suas cabeças, milhares de emoções se chocaram, colidiram e desapareceram desordenadamente. Todavia, permitem que escritores impinjam a vocês uma versão de tudo isso, uma imagem da senhora Brown que não se assemelha nem um pouco àquela aparição surpreendente. Em sua simplicidade, parecem acreditar que escritores não são feitos de carne e osso e que sabem mais sobre a senhora Brown do que vocês. Não cometam tamanho engano. Essa separação entre escritor e leitor, essa sua humildade e esse nosso ar de profissionalismo são os fatores que corrompem e maculam os livros que deveriam ser o fruto saudável de uma forte aliança entre nós. 
Sendo assim, livrem-se dos romances fáceis e pouco sinceros, das biografias ridículas e auspiciosas, da crítica complacente e insípida, dos poemas que celebram melodiosamente a inocência das rosas e das ovelhas. Livrem-se de tudo que plausivelmente passa por literatura nos dias de hoje.
Sua responsabilidade está em insistir que os escritores desçam de seus pedestais e descrevam a senhora Brown da maneira mais bela possível, com honestidade indubitável. Devem insistir que ela seja a velha senhora de capacidade ilimitada e variedade infinita, capaz de aparecer em qualquer lugar e de fazer qualquer coisa. Além do mais, as coisas que diz e as coisas que faz, seus olhos e seu nariz, sua fala e seu silêncio exercem uma fascinação tremenda, pois ela é, com certeza, tudo pelo que
vivemos, a própria vida.
Não esperem uma apresentação completa e satisfatória dela desde o início.
Tolerem o intermitente, o obscuro, o fragmentado, o incorreto. Sua ajuda é invocada por uma boa causa. Farei uma ultima previsão ultrajantemente ousada: estamos no limiar de 167 uma das grandes eras da literatura inglesa, mas só a alcançaremos na totalidade se estivermos determinados a nunca, nunca desertarmos da senhora Brown.

Os Contadores de Verdades - Virginia Woolf (Ensaio)


Os Contadores de Verdades

Na ficção inglesa há muitos escritores que agradam nosso desejo de acreditar:

Defoe, Swift, Trollope, Borrow, W.E. Norris, por exemplo. Entre os franceses,

lembramos instantaneamente de Maupassant. Eles nos asseguram que tudo é como nos

dizem que é e o que descrevem de fato acontece diante de nossos olhos. Seus romances

nos oferecem o mesmo tipo de revigoramento e prazer que temos ao assistir a algo

acontecendo na rua lá embaixo. Um coletor de lixo derruba com um movimento

desajeitado do braço uma garrafa que parece conter Condy. Ela quebra no asfalto. O

coletor se abaixa, cata os cacos e se volta para um homem que está passando. Não

conseguimos tirar os olhos dele até que tenhamos saciado nosso desejo de acreditar por

completo. É como se um canal fosse cortado, no qual de repente e com grande alívio,

uma emoção até agora reprimida extravasasse. Esquecemos seja lá o que for que

estávamos fazendo. Essa experiência positiva sobrepuja todos os sentimentos confusos e

ambíguos de que estamos imbuídos naquele momento. O coletor derrubou a garrafa, a

mancha vermelha se espalha no asfalto. Acontece precisamente assim.

Os romances dos grandes contadores de verdades, dos quais Defoe é, de longe, o

líder inglês, nos proporcionam esse tipo de revigoramento. Defoe nos conta a história de

Moll Flanders, de Robinson Crusoe, de Roxana e sentimos nosso poder de crença

precipitar-se, moldado instantaneamente, fertilizando e revigorando todo nosso ser.

Acreditar parece o maior de todos os prazeres. É impossível saciar nossa avidez pela

170

verdade de tão voraz que é. Não há uma só palavra vaga ou inconsistente no livro que

surpreenda nosso inquieto senso de segurança. Três ou quatro ataques diretos da pena

esculpem o caráter de Roxana. Seu jantar é servido com regularidade. Há vitela e nabos.

O dia está bom ou nublado, o mês é setembro ou abril. Com persistência e naturalidade

e uma curiosa reiteração quase inconsciente, os fatos que mais fortalecem nossa

confiança na estabilidade da vida real – dinheiro, mobília, comida – são reiterados, até

que parecemos aprisionados entre objetos sólidos em seu universo sólido.

Um dos elementos de nosso deleite vem do fato de esse mundo, com todos os

seus pormenores, ser brilhante, tridimensional, difícil e, ainda assim, ser completo, a

fim de que sejamos tranqüilizados seja qual for a direção que tomemos. Se

pressionarmos além do confinamento de cada página, como fazemos instintivamente,

complementando o que o autor deixou por dizer, percebemos que traçamos nosso

caminho, há indicações que se deixam perceber. Há um submundo, um lado obscuro

desse mundo. Defoe presidia seu universo com a onipotência de um Deus a fim de que

ficasse equilibrado com perfeição. Nada é tão grande que ostracize outro elemento e

nada é tão pequeno que agigante outro fato.

O nome de Deus é com freqüência proferido pelas pessoas, que invocam uma

divindade pouca coisa menos substancial que elas mesmas, um ser bem acomodado no

topo das árvores, não muito distante das pessoas. Uma divindade mais mística, se Defoe

nos fizesse acreditar nela, teria desacreditado o cenário e lançado dúvidas sobre a

essência de homens e mulheres, além de feito sucumbir nossa crença neles. Suponha

que ele mesmo lidasse com as sombras esverdeadas das profundezas da floresta ou com

a fluidez do verão. Outra vez, não importa qual fosse nosso deleite na descrição,

deveríamos sentir constrangimento porque essa outra realidade prejudicaria a realidade

sólida e monumental de Crusoe e de Moll Flanders. Assim como é, saturada com a

verdade do próprio universo de Defoe, tal discrepância não teria permissão para se

impor. Deus, homem e natureza são todos reais, do mesmo tipo de realidade: uma

proeza estonteante, pois implica submissão completa e perpétua do autor a sua

convicção, uma surdez obstinada a todas as vozes que o seduzem e tentam encantá-lo

com outras suscetibilidades. Devemos só refletir como é raro um livro ser desenvolvido

com o mesmo impulso de crença a fim de que sua perspectiva seja harmoniosa por

inteiro para percebermos que escritor grandioso foi Defoe. Podemos contar nos dedos os

romances produzidos para serem obras-primas que falharam porque defendiam

171

bandeiras: as realidades se misturam, o ponto de vista muda e, em vez de clareza,

conseguimos uma confusão atordoante que nem sempre é só momentânea.

Tendo saciado nosso desejo de crença e aproveitado o alívio e o sossego desse

mundo existente, exterior e positivo, tão palpável e concreto, aquela falta de atenção

pela inatividade começa a nos assolar, o que significa que a resistência em uso está

saturada. Absorvemos tanto dessa verdade literal quanto pudemos e começamos a

desejar alguma coisa alternativa, porém harmoniosa. Não queremos, exceto em um

lampejo ou insinuação, uma verdade como a oferecida a Roxana quando ela nos conta

como seu senhor, o Príncipe, sentava ao pé de seu filho e adorava olhar para ele

enquanto dormia. Tal verdade é escondida, nos faz mergulhar e percebê-la e, sendo

assim, paralisa a ação. É ação que queremos. Um desejo seguiu seu curso, um outro

salta à frente para assumir a carga e nem mesmo formulamos nosso desejo, Defoe já o

concedeu. Adiante com a história é o grito constante em seus lábios. O fardo é liberado

tão logo reúna os fatos. O tempo todo, brotando com frescor e sem esforço, ação e

evento se sucedem com rapidez colocando em movimento essa densa acumulação de

fatos e mantendo uma brisa soprando em nossos rostos. Torna-se óbvio que, se as

pessoas de Defoe são generosamente equipadas ou despojadas de certas afeições como o

amor de marido e filhos, o que esperamos delas é serenidade calma para se

movimentarem mais rapidamente. Devem viajar com leveza, pois foi pela aventura que

foram criadas. Precisarão mais de sagacidade, músculos e senso comum na estrada

pedregosa que devem trilhar do que de sentimento, reflexão e poder de auto-análise.

A crença é agraciada por Defoe por completo. Seu leitor pode ficar descansado

pois compartilha de grande parte do domínio do autor. Testa, experimenta, sente que

nada o frustra ou se esvai diante dos olhos. Ainda assim a crença busca sustentação

renovada como quem dorme procura a outra face do travesseiro. Volta-se,

provavelmente, para alguém mais próximo do que Defoe para satisfazer seu desejo de

verdades, pois o distanciamento de um romance no tempo estabelece graciosidade

imaginativa, em conseqüência, estranheza. Se o leitor tivesse acesso, por exemplo, a

algum livro de um autor prolífico e outrora estimado como W.E. Norris descobriria que

a justaposição de dois livros apresentaria cada um deles com mais clareza.

W.E. Norris foi um autor diligente, excelente para isolarmos em estudo, pelo

menos porque representa aquele vasto grupo de romancistas cujo trabalho mantém a

ficção viva na falta de grandes mestres. A princípio, parecemos receber tudo o que

precisamos: meninas e meninos, críquete, tiro, dança, embarcações, amor, casamento;

172

um parque aqui, uma sala de estar londrina ali; um senhor inglês aqui, um cafajeste ali;

jantares, chás, galopes no Row e, por trás de tudo isso, os verdes e cinzentos campos

domésticos e veneráveis e casas nobres da Inglaterra. Conforme uma cena sucede a

outra, lá pela metade do livro, parecemos ter muito mais em que acreditar do que

podemos suportar. Exaurimos o vigor da gíria, da modernidade, da hábil mudança de

humor. Matamos o tempo no limiar das cenas, pedindo permissão para pressionar um

pouco mais. Capturamos uma frase e a observamos como se pudesse produzir mais. Na

seqüência, desviamos os olhos das figuras principais e tentamos delinear alguma coisa

no pano de fundo, perseguimos esses sentimentos e relações do momento presente sem,

desnecessário dizer, o objetivo de descobrir alguma concepção arguta, algo que

possamos chamar de uma leitura de vida. Não, nosso desejo é outro: alguma sombra de

profundidade apropriada à grandeza das figuras, alguma Providência como a fornecida

por Defoe ou a moralidade que ele sugere a fim de que possamos ir além desse tempo

sem cair na falta de sentido.

Descobrimos que essa é a marca de um escritor de segunda categoria: não pode

sugerir aqui ou parar ali. Toda sua força se concentra em manter a cena diante de nossos

olhos, seu brilho e sua credibilidade. A superfície é tudo, não há nada além.

Nossa capacidade de acreditar, porém, não está nem perto de se exaurir. É só

uma questão de encontrar algo que a reviva. Nem Shakespeare, nem Shelley, nem

Hardy; talvez Trollope, Swift e Maupassant. Acima de tudo, Maupassant é o mais

promissor do momento, pois aproveita a grande vantagem de escrever em francês. Não

que o mérito seja dele, pois temos mais incentivo para ler em uma língua cujas arestas

não foram desgastadas pelo nosso uso diário. As próprias sentenças se formam de

maneira definitivamente mais sedutora. As palavras formigam e brilham. Quanto ao

inglês, ai de mim, é nossa língua, vulgarizada pelo manuseio e pela exposição e talvez

não seja tão desejável. Além disso, cada uma dessas historietas compactas tem um quê

de pólvora, artisticamente organizadas para explodirem quando pisamos nelas. As

últimas palavras são sempre altamente inflamáveis. Lá vão, bang! Há luz para nós no

deslumbramento descompromissado de alguém com sua mão levantada, em alguém

escarnecendo, dando as costas, pegando ônibus. É como se essa ação insignificante, seja

qual for, resumisse toda a situação para sempre.

A realidade que Maupassant nos apresenta é sempre corpórea, sensorial: a carne

madura de uma jovem criada, por exemplo, ou a suculência da comida. Elle restait

inerte, ne sentant plus son corps, et l’esprit disperse, comme se quelqu’un l’eût

173

d’échiqueté avec un de ces instruments don’t se servent les cardeurs pour effiloquer la

laine des matelas.160 Ou suas lágrimas secaram em seu rosto comme des gouttes d’eau

sur du fer rouge.161 Tudo é concreto, tudo visualizado. É um mundo em que podemos

acreditar com nossos olhos, narizes e sentidos. Contudo, é um mundo que produz

gotinhas de amargura todo o tempo. Isso é tudo? E se for, é suficiente? Devemos, então,

acreditar nisso? Questionamos. Agora que temos a verdade nua e crua, uma sensação

desagradável, que devemos analisar antes de continuarmos, parece atrelada a ela.

Suponha que uma das condições de as coisas serem como são é serem

desagradáveis. Teremos força suficiente para suportar o desagradável pelo prazer de

acreditar nelas? Não ficamos de algum modo chocados com As Viagens de Gulliver,

Boule de Suif e La Maison Tellier? Não estamos sempre tentando desviar dos obstáculos

da feiúra dizendo que Maupassant e os outros como ele são toscos, cínicos e sem

imaginação, quando, de fato, é sua crueza que ressentimos? O fato de que há

sanguessugas nas pernas nuas das criadas, que há bordéis e que a natureza humana é,

fundamentalmente, fria, egoísta e corrupta? Esse desconforto diante do desagradável da

verdade é uma das primeiras coisas que desestabilizam nosso desejo de acreditar. Nosso

sangue anglo-saxão talvez nos tenha dado um instinto de que a verdade é, se não bela,

pelo menos agradável ou virtuosa quando contemplada. Observemos a verdade

novamente, desta vez através do olhar de Anthony Trollope: um homem grande,

tempestuoso, que usava óculos e tinha voz alta de caçador... cuja linguagem na

sociedade masculina era, creio, tão lúgubre que não me permitiriam tomar o desjejum

com ele... que perambulava pelo país pedindo uma moeda e escrevia, como diz a lenda,

tantos milhares de palavras antes do desjejum de cada dia de sua vida. 162

Certamente, romances como Barchester Towers163 mostram a verdade, e a

verdade inglesa, à primeira vista, é quase tão desprovida de detalhes quanto a francesa,

com uma diferença: Slope é um hipócrita desajeitado asqueroso e Proudie é uma

brutamontes dominadora. O diácono é bem intencionado, mas tosco e grosseiro. Graças

160 N.T. Citação em francês no original, sem tradução para o inglês. Ela ficou parada, não sentindo mais

seu corpo, e o pensamento desordenado / espírito disperso como se alguém a tivesse dividido em

quadrados com um daqueles instrumentos que os separadores de fios têxteis usam para desfiar a lã dos

colchões. (tradução nossa)

161 N.T. Citação em francês no original, sem tradução para o inglês. (...) como gotas de água sobre ferro

quente. (tradução nossa)

162 Em Vignettes of Memory, de Lady Violet Greville, 1927. (referência do original, tradução nossa)

163 N.T. Segundo volume da trilogia Barsetshire, publicado em 1857, Barchester Towers, romance

cômico clássico sobre o embate de modos novos e antigos, foi responsável pela reputação de Trollope

entre os leitores vitorianos.

174

ao vigor do escritor, o mundo no qual são os habitantes mais proeminentes gira em

torno da correria diária de alimentar e formar crianças e adorar, amplamente e com

gosto, as amarras que não deixam uma brecha sequer para escaparem. Acreditamos em

Barchester Towers como percebemos a realidade de nossas contas semanais. De fato,

não desejamos fugir das conseqüências de nossa crença, pois a verdade dos Slopes e

Proudies na noite da festa em que o vestido de Proudie rasga nas costas sob a luz de

onze lampiões a gás é inteiramente aceitável.

No auge de sua inspiração, Trollope é um novelista maior, para não dizer de

primeira linha. Sua melhor fase ocorreu quando escreveu enérgica e rapidamente a

partir das tendências da vida provinciana, entalhando, sem crueldade, em boa forma e

bom senso, os retratos de homens e mulheres bem alimentados dos anos cinqüenta 164,

de preto e sem imaginação. A sua maneira, que é moldada por eles, tem uma sagacidade

admirável, como a de um médico de família ou um advogado, extremamente

familiarizado com as fraquezas humanas para não julgá-las com tolerância e sem estar

ileso a essas fraquezas, como gostar de alguém muito mais do que de outrem sem

nenhum motivo aparente. Na verdade, embora se esforçasse para ser severo, e era o

melhor quando o fazia, Trollope não conseguiria ficar à distância sem que soubéssemos

que amava a moça bonita e odiava o farsante asqueroso com tanta veemência que

somente um puxão muito forte das rédeas o manteria na linha. É como se fosse o

anfitrião de uma festa familiar e seu leitor se tornasse, com o passar do tempo, um de

seus amigos mais íntimos, sentando-se à mesa a sua direita. Seu relacionamento se torna

confidencial.

Tudo isso complica o que era simples em Defoe e em Maupassant, que só nos

pediam diretamente que acreditássemos. Em Trollope, somos levados a acreditar através

de seu temperamento, o que estabelece uma outra relação com ele, que nos diverte, mas

também nos perturba. A verdade já não é tão verdadeira. A verdade nua e crua que é

desvelada em As Viagens de Gulliver, Boule de Suif e La Maison Tellier é apresentada

por Trollope adornada com um lindo bordado. Porém, não é desse adorno atraente da

personalidade de Trollope que vem o problema que se mostra fatal contra a verdade

sólida, bem apoiada e autenticada nos romances de Barsetshire. A própria verdade, por

mais desagradável que seja, é sempre interessante. Infelizmente, as condições para

contar histórias são sempre difíceis, demandam uma cena após a outra, um episódio

164 N.T. Anos cinqüenta do século XIX.

175

apoiado no outro, uma personagem na outra, tudo equilibrado e com os mesmos valores

prevalecendo. Se nos dizem que a iluminação do palácio era a gás, devem nos dizer que

as casas nobres eram fiéis às lamparinas a óleo. O que acontecerá se, no processo de

solidificação do corpo de sua história, o romancista se vir sem acontecimentos para

narrar ou com seu poder de criação esvaziado? Deverá continuar? Sim, pois a história

deve ser terminada: a intriga desmascarada, os culpados punidos e os amantes casados

no final. O testemunho, às vezes, se torna meramente uma crônica. A verdade se perde

em um catálogo simplificado. Seria melhor deixar um vazio ou até ultrajar nosso senso

de probabilidade do que preencher os espaços com improvisação: o lado avesso da

verdade é um tecido surrado, sem graça, monótono e ressequido diante da fluidez da

imaginação. O romance estabeleceu suas ordens: consisto de trinta e dois capítulos, diz.

E quem sou eu, parecemos ouvir o humilde e sagaz Trollope questionar, com seu bom

senso costumeiro, para desobedecê-lo? E produz, valentemente, improvisações.

Se avaliarmos o que vimos com os contadores de verdades, descobriremos que é

um mundo em que nossa atenção sempre se dirige a coisas que podem ser vistas,

tocadas e experimentadas a fim de que consigamos atingir um senso aguçado da

realidade de nossa existência física. Tendo estabelecido assim nossa crença, todos os

contadores de verdades juntos arquitetam que a solidez deve ser estremecida pela ação

antes de se tornar opressora. Os fatos acontecem e as coincidências complicam a

história simples. Ações existem para manter uns e outros e autores são muito

cuidadosos para não serem desacreditados ou alterarem sua ênfase na criação de

personagens diferentes de pessoas que se expressam abertamente em carreiras ativas e

aventureiras. Os contadores de verdades detêm os três poderes que dominam a ficção

em relação estável: Deus, a natureza e o homem, a fim de que enxerguemos o mundo

pela perspectiva apropriada. Um mundo em que tudo permaneça bom, não só aqui

diante de nós, mas atrás da árvore ou entre aquelas pessoas desconhecidas ao longe, na

sombra, atrás daqueles montes. Ao mesmo tempo, contar a verdade implica ser

desagradável. A mordacidade e seus limites são parte dela. Não podemos negar que

Swift, Defoe e Maupassant nos convencem mais na profundidade da feiúra do que

Trollope em sua afabilidade. Por essa razão, ao contar a verdade um autor desvia-se,

facilmente, para o satírico, que caminha lado a lado com os fatos e os imita, como uma

sombra que só é um pouco mais curvada e angular do que o objeto que representa.

Mesmo assim, em seu estado perfeito, quando podemos acreditar

completamente, nossa satisfação é plena. Podemos afirmar que, embora outros estados

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melhores ou mais exaltados possam existir, não há nenhum que torne esse desnecessário

ou aquele excedente. Porém, contar a verdade traz consigo uma fraqueza que é aparente

no trabalho de escritores menores e de mestres exauridos; contar a verdade

provavelmente se degenera em um relatório superficial de fatos: a repetição de que foi

na quarta-feira que o vigário foi à reunião de sua mãe, na qual estavam presentes a

senhora Brown e a senhorita Dobson, que chegaram na sua charrete puxada por um

pônei. Tal afirmação, o leitor logo percebe, não tem nada de verdade a não ser o exterior

respeitável.

Lentamente, levando em consideração o relatório superficial dos fatos, a falta de

metáforas, a simplicidade da linguagem e o fato de que acreditamos mais quando a

verdade nos é mais dolorosa, não é de se estranhar que tomemos consciência de um

outro desejo que cresce espontaneamente e reveste aquelas fissuras deixadas nos

grandes monumentos dos contadores de verdades. Somos arrebatados pelo desejo de

distanciamento, música, sombra e espaço. Ao anoitecer, o coletor de lixo pegou sua

garrafa quebrada, atravessou a rua e começou a perder solidez e detalhamento ao longe.

Os Românticos

Era uma manhã de novembro e os penhascos que se erguem do oceano estavam

suspensos na bruma espessa e pesada. Os portões da antiga torre, meio em ruínas, na

qual lorde Ravenswood vivera os últimos e mais atormentados anos de sua vida, se

abriram para que seus restos mortais fossem levados a uma morada ainda mais lúgubre

e solitária.

Nenhuma mudança poderia ser mais completa. O coletor de lixo se tornou um

lorde, o presente se transformou em passado, o discurso anglo-saxão feioso se tornou

mais glamuroso e mais silábico. Em vez de potes e panelas, bicos de gás e coches

aconchegantes, temos uma torre meio em ruínas e penhascos, o oceano e novembro

cheio de brumas. Esse passado e a ruína, o lorde e o outono, o oceano e o penhasco são

tão agradáveis quanto sair de uma sala abafada e barulhenta para o ar livre da noite. A

suavidade curiosa e o idílio de Bride of Lammermoor, a atmosfera das charnecas

enferrujadas e de ondas quebrando, a escuridão e a distância realmente parecem se

somar a outra cena mais verdadeira, que ainda trazemos na memória, e dar-lhe

completude. Depois da tempestade, a bonança, depois do clarão, a frieza. Os contadores

de verdades tinham muito pouco amor, ao que parece, pela natureza, que era usada

177

quase sempre como obstáculo a enfrentar ou como pano de fundo, não esteticamente por

contemplação ou por qualquer papel que poderia exercer nos assuntos das personagens

áridas. Afinal a cidade era seu habitat natural. Vamos compará-los em qualidades mais

essenciais: como tratam as pessoas, por exemplo. Lá vem uma menina meio trôpega em

nossa direção, apoiada de leve no braço de seu pai:

Os traços, ainda com certo ar de menina, de Lucy Ashton são especialmente

bonitos e foram concebidos para expressar paz de espírito, serenidade e indiferença ao

brilho superficial dos prazeres mundanos. Seus cachos, que eram de um dourado irreal,

dividiam-se na fronte de brancura especial como um vislumbre do brilho do sol pálido

e entrecortado sobre um monte coberto de neve. A expressão de compostura era gentil,

suave, tímida e feminina ao extremo, parecia encolher-se diante do olhar mais casual

de um estranho do que apreciar sua admiração.

Ninguém poderia parecer-se menos com Moll Flanders ou com a senhora

Proudie. Lucy Ashton é incapaz de agir ou controlar a si mesma. Um touro corre em sua

direção e ela afunda no solo, um trovão ressoa e ela desmaia. Ela vacila a cada

palavrinha de cerimônia ou polidez: Oh, se o senhor é um homem, se for um cavalheiro,

ajude-me a encontrar meu pai. Poderíamos dizer que ela não tem nenhum caráter além

do tradicional: para seu pai é dedicada, para seu amante, recatada, para os pobres,

benevolente. Comparada a Moll Flanders, é uma boneca com serragem nas veias e cera

na face. Ainda assim, somos absorvidos pela leitura e nos familiarizamos com suas

proporções. Percebemos, por fim, que qualquer coisa mais individualizada, excêntrica

ou pontual enfatizaria o que não queremos. Esse espectro adelgaçado ronda o cenário e

é parte dele. Ela e Edgar Ravenswood são importantes para manter esse mundo

romântico com suas formas cruas, para prendê-las com o tema do amor infeliz que é

necessário para manter todo o restante. O mundo a que se apegam tem suas próprias leis

e também ignora ou elimina tão drasticamente quanto o mundo real. Há sentimentos de

extrema exaltação: amor, ódio, ciúme, remorso e, por outro lado, racismo e simplicidade

exacerbada. A retórica dos Ashtons e Ravenswoods se completa com o humor dos

camponeses e a tagarelice das mulheres do vilarejo. O verdadeiro romântico nos joga da

terra para o céu. O grande mestre da ficção romântica, Walter Scott, usa essa liberdade

por completo. Ao mesmo tempo, desaprovamos a melancolia que ele evoca como, por

exemplo, em Bride of Lammermoor. Rimos de nós mesmos por termos nos emocionado

tanto com o sistema tão absurdo. Contudo, antes de imputarmos esse defeito ao

romance, devemos considerar se a falha não é de Scott. Esse homem de mente

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preguiçosa era bem capaz, com o impulso de preencher um ou dois capítulos

convencionalmente, de utilizar uma fonte de frases vazias ou jornalísticas que, por mais

charme próprio que tivessem, negligenciariam ainda mais nossa atenção.

Descuido nunca foi o problema de Robert Louis Stevenson. Era cuidadoso,

cuidadoso ao extremo: um homem que combinava inusitadamente a psicologia de

menino com a extrema sofisticação do artista. Mesmo assim, obedecia ainda mais

implicitamente do que Walter Scott às leis do romanesco. Stevenson estabelece a cena

no passado, mantém suas personagens sempre ameaçadas sob a ponta de uma espada

por causa de alguma aventura desesperada e encobre a tragédia com humor

despretensioso. Não há dúvidas de que sua consciência e seriedade como escritor lhe

renderam uma boa colocação. Abra The Master of Ballantrae em qualquer página que

só encontrará desgaste pelo uso. Por outro lado, o tecido de Bride of Lammermoor está

cheio de falhas, rasgos remendados, costurados às pressas. Em Stevenson, o romanesco

é tratado com seriedade e permeado de todas as vantagens da arte literária mais

refinada, o que resulta em nunca considerarmos quão absurda a situação é ou

concluirmos que não temos mais emoções com as quais suprir a demanda da história.

Obtemos, ao contrário, uma história firme e aceitável, que não nos trai jamais, que é

corroborada, concretizada, de boa qualidade em cada detalhe. Cada cena nos é mostrada

com precisão e astúcia, como se o trabalho do escritor fosse livrar sua essência do

envoltório.

Foi como ele disse: não havia qualquer movimento de respiração, um

estrangulamento de geada sem vento havia comprometido o ar e ao continuarmos

adiante à luz de velas, a escuridão era como um teto sobre nossas cabeças. Ou, ainda: o

rigor do inverno durou toda a estação. Um frio sufocante, pessoas se movimentando

como chaminés enfumaçadas, uma lareira enorme atulhada de lenha no corredor,

alguns dos pássaros da primavera que já haviam partido para o norte, para nossa

região, sitiando as janelas da casa ou saltitando pela relva congelada, como seres

atormentados.

Um estrangulamento de geada... Pessoas se movimentando como chaminés

enfumaçadas. Podemos pesquisar os romances Waverley em vão na busca por uma

escrita tão densa assim. Separadamente, essas descrições são adoráveis e brilhantes. A

falha está em algum outro ponto, no todo do qual fazem parte. Algo parece estar

faltando, pois, naqueles minutos críticos que decidem o destino de um livro que

terminamos de ler e cujo conteúdo pode ser contemplado como um todo pela mente.

179

Talvez seja o fato de o detalhe ser proeminente demais. A mente é capturada por essa

ela passagem descritiva, pela exatidão curiosa da frase, porém o ritmo e o alcance da

emoção que a história provoca não são satisfeitos. Sofremos restrições quando

deveríamos oscilar livremente. Nossa atenção é presa por um nó de laço ou um

refinamento de traços quando, na verdade, só desejamos um corpo nu sob o céu.

Scott repele nosso gosto de mil maneiras. Mas a crise, este é o ponto, em que o

sotaque cai e modela o livro, é certa. Desajeitado, descuidado como é, ele se recompõe

no momento crítico para desferir o golpe necessário que dá ao livro sua vivacidade.

Lucy senta-se tagarelando acomodada como uma lebre sobre sua forma. Pergunta:

Então você assumiu sua noiva atraente?, deixando seu discurso afetado de grande dama

de lado e assumindo um tom mais popular. Ravenswood afunda em areia movediça.

Somente um vestígio de seu destino apareceu. Uma enorme pena negra havia sido

retirada de seu chapéu e as ondas encrespadas da maré alta a levaram para os pés de

Caleb. O velho a pegou, secou e colocou junto ao peito. Nessas duas passagens as mãos

do autor estão direcionando o livro. Em The Master of Ballantrae, porém, embora cada

detalhe seja exato e elaborado a fim de, separadamente, cativar nossa admiração, não há

essa conclusão final. O que deveria ter ajudado, em retrospectiva, parece ser alheio ao

romance. Lembramo-nos de detalhes e não do todo. Lorde Durisdeer e o Master morrem

juntos, mas quase não percebemos. Nossa atenção foi desperdiçada em algum outro

ponto.

Parece que o espírito romântico é exigente: se vê um homem atravessar a rua sob

a iluminação pública e perder-se nas sombras da noite, imediatamente dita que direção o

escritor deve seguir. Não queremos saber muito sobre o tal homem, dirá o espírito

romântico; queremos que expresse nossa capacidade de sermos nobres e aventureiros,

experimente lugares selvagens e sofra os extremos da sorte, que seja dotado de

juventude e distinção e aliado dos campos, ventos e pássaros selvagens. Além disso,

deverá ser um amante, não de modo introspectivo e minucioso, mas abertamente. Seus

sentimentos devem fazer parte do cenário, os leves tons de marrom e azul dos bosques

distantes e das plantações devem estar dentro dele. E talvez uma torre, também, e um

castelo onde floresce a boca de leão. Acima de tudo, o espírito romântico exige uma

crise aqui, outra acolá, em que a onda que invade o peito arrebenta. Scott contempla

esses sentimentos mais do que Stevenson, embora com qualificação suficiente para

fazer com que nos aprofundemos na questão do romance, seu escopo e suas limitações.

A esta altura, talvez fosse interessante lermos The Mysteries of Udolpho, sobre o qual,

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considerado um absurdo gótico, já se riu tanto. É difícil encará-lo com olhar neutro;

sempre o analisamos com a expectativa de ridicularizá-lo. Porém, quando encontramos

sua beleza, alcançamos o outro extremo e apreciamos trechos poéticos. A beleza e o

absurdo estão presentes no romance, que é um bom teste da atitude romântica, pois

Radcliffe leva a liberdade do romance ao extremo. Enquanto Scott volta cem anos no

tempo para conseguir o efeito do distanciamento, Radcliffe volta trezentos. Com um só

golpe, livra-se de um anfitrião de desarmonia e aproveita sua desmesurada liberdade.

É seu desejo, enquanto romancista, descrever cenários, seu grande dom. Assim

como todo escritor verdadeiro, enfrenta todos os obstáculos para atingir seus objetivos.

Somos trazidos para um imenso mundo vazio e airado. Algumas pessoas com mentes,

maneiras e discurso inteiramente representativos do século XVIII passeiam por vastos

jardins, ouvem rouxinóis cantarem apaixonadamente pelos bosques no meio da noite,

assistem ao pôr do sol sobre a lagoa de Veneza e aos tons de rosa que recaem sobre os

Alpes longínquos e as torres azuladas de um castelo italiano. Essas pessoas, quando

bem nascidas, têm o mesmo sangue dos abastados de Scott, silhuetas atenuadas e

formais que, curiosamente, apesar de também serem ensimesmadas, insignificantes e

insípidas, emergem harmoniosamente da trama.

Mais uma vez percebemos a força que os românticos adquirem por obliterarem

os fatos. A solidez do chão desaparece, outras formas se tornam aparentes e outros

sentidos se aguçam com o esmorecimento da luz. Tornamo-nos conscientes do perigo e

da escuridão de nossa existência e a realidade confortável se torna um fantasma

também. Fora de nosso refúgio ouvimos o vento enraivecido e as ondas arrebentarem.

Nesse estado nossos sentidos estão tensos e apreensivos, sons que normalmente não

ouviríamos são audíveis. As cortinas farfalham. Algo na quase penumbra parece se

mover. Estará vivo? O que será? O que estará procurando aqui? Radcliffe consegue nos

fazer sentir tudo isso, principalmente porque é capaz de nos conscientizar da paisagem

e, assim, nos induzir a um estado de imparcialidade favorável ao romance. Em

Radcliffe, porém, mais diretamente do que em Scott e Stevenson, o absurdo é evidente,

as engrenagens do sistema são visíveis e o processo é audível. As exigências dos

românticos estão mais claras.

Tanto Scott quanto Stevenson, com o puro instinto da imaginação, mostram a

comédia rústica e o franco dialeto escocês. Eles certamente adivinharam que a mente se

desdobraria naquela direção quando relaxasse. Para Radcliffe, por outro lado, tendo

chegado ao limite, é impossível voltar a trás. Tenta nos consolar com passagens

181

cômicas, naturalmente colocadas nas falas de Anette e de Ludovico, os criados. A

ruptura é muito abrupta, porém, para suas limitações de senhora da alta classe, e ela

destrói os grandes momentos e a bela atmosfera com um reflexo pálido de romance, que

é mais entediante do que qualquer obscenidade. Os mistérios se acumulam. Corpos

assassinados se multiplicam, mas ela é incapaz de criar a emoção com a qual devemos

percebê-los. O resultado que ali jaz é inacreditável e, portanto, ridículo. Cai o véu, lá

está a figura escondida. Há um rosto decomposto e os vermes se contorcem. Nós rimos.

O poder que habita toda a tessitura de um romance esmorece: as sentenças, seu

tamanho e sua forma, as inflexões, os maneirismos. Tudo o que era usado com tanto

orgulho e naturalidade sob o impulso de uma emoção verdadeira se torna rançoso,

forçado e indesejável. Radcliffe escorrega, trôpega, para o estilo desgastado de Scott e

embroma página após página, num estilo que pode ser ilustrado por este exemplo:

Emily, que sempre se esforçara para se comportar de acordo

com os princípios mais corretos e cuja mente era bem sensata,

não só em relação ao que era moralmente justo, mas sobre

qualquer coisa que fosse bela no caráter feminino, estava

chocada com tais palavras.

E assim continua até que afundamos e nos afogamos na insípida maré. Contudo,

Udolpho passa esse teste. Provoca uma emoção tão distinta quanto especial, de acordo

com nossa definição pessoal de emoção.

Se enxergamos agora onde o risco do romance reside, como é difícil sustentar o

estado de espírito, como o alívio da comédia é necessário, como a distância das

experiências das pessoas comuns e a estranheza de seus elementos se tornam ridículas,

vemos também que essas emoções são, em si mesmas, jóias sem preço. O romance

romântico nos proporciona uma emoção profunda e genuína. Scott, Stevenson e

Radcliffe, cada um a sua maneira, desvendam outro território da ficção, fazem aflorar

nosso desejo intenso por algo novo, o que é prova de seu poder.